Antes de mais nada, esse texto tem spoilers tanto de Bem Feito quanto de Wonder Project J2.
Metalinguagem é algo comum em videogames, muitos jogos usam da ferramenta como uma brincadeirinha e alguns como um elemento principal do jogo. Dentre os usos, o que mais anda me chamando atenção é quando o jogo estabelece uma relação do jogador com os personagens dentro do jogo.
Não falo de casos de avatares self insert em RPGs ou Date Sim, falo casos que o jogo reconhece que tem alguém além da tela e estabelece uma relação com isso. O exemplo mais claro de jogo que faz isso é The Stanley Parable, mas o que mais me provocou pensamentos sobre relações personagem x jogador recentemente foi Bem Feito.
Bem Feito é um jogo desenvolvido pela OiCabie lançado originalmente em 2021 na Itch.io, inclusive, o jogo original tem uma review aqui no Game Lodge. No ano de 2023, o jogo ganhou um Remake para consoles e Steam, tendo uma interface totalmente nova e conteúdo a mais.
Da pra chamar o jogo de uma “Creepypasta jogável”, onde toda a dinâmica dele é sobre você emular um jogo de um console esquecido e o explorando.
No jogo, controlamos Reginaldo, um garoto solitário que vive num planetinha minúsculo, cuidando da sua casa, as vezes recebendo visitinhas de amiguinhos. E ai nós podemos botar Reginaldo para fazer diversas tarefinhas, como cozinhar, cortar a grama, regar as flores, matar seus amigos…
Com bons tons de humor ácido e texto divertido, Bem Feito acaba se apresentando como um jogo de terror
Ao completar o jogo, Reginaldo fala diretamente com você. Caso você não tenha matado ninguém, Reginaldo te agradecerá pela aventura e amigos novos, e implorará para você não resetar o jogo, pois não quer voltar a solidão. Caso você mate alguém, Reginaldo irá brigar contigo, te prender no jogo e te apavorar.
Provavelmente, para explorar mais as possibilidades do jogo e ganhar achievements você fará ambos os finais, várias vezes.
O texto do jogo faz referências a Pequeno Principe e da muita ênfase na frase “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Olhando por um lado, por estar cativado com o jogo, o jogador entra num ciclo de matança e tortura com Reginaldo.
Afinal, não existe “jogador passivo”, sua curiosidade com o jogo pode levar a Reginaldo, mesmo expressando não querer isso, a ser um assassino.
E dai pensando em toda essa relação tóxica , eu pensei no meu jogo de Nintendo 64 favorito, que também cria uma relação entre o jogador e a protagonista…de forma quase que oposta.
Wonder Project J2 é um dos primeiros jogos de Nintendo 64 lançado apenas no Japão. O jogo é um Life simulation que se inspira em jogos como Princess Maker. Neste jogo, o jogador se torna responsável de cuidar de Josette, uma robô que quer aprender sobre humanidade.
No jogo, temos uma introdução aonde Gepetto, o criador de Josette, morre antes de ter tempo de cria-la. Josette não entende o que aconteceu, mas você, jogador, se torna o responsável pelo crescimento da garota android.
No jogo não controlamos Josette de forma direta, na verdade ela diz que está sendo cuidada por alguém “de um mundo que ela não enxerga” e existe um pássaro robô que serve de cursor sendo o intermediário na comunicação entre você e Josette
Controlando o pássaro, você ira clicar nas direções que quer que a garota siga, nos itens que ela precisa interagir, apertando o botão A o pássaro faz um sinal de afirmativo, B, um sinal de negativo. Nem sempre Josette irá entender direito o que você pede a ela e tomará atitudes inusitadas, cabe a você a dar reforços positivos e negativos para ela.
Enfim, Josette vive numa ilha que está ocupada por um império fascista e que caça o tipo de android que ela é, fazendo com que ela se passar por humana seja essencial.
Josette ao longo do jogo irá aprender a conversar, a ler, cantar, dançar, pilotar um caça e atirar em aviões de um império facista… Essas coisas de adolescente em fase de crescimento.
Diversas vezes Josette olha diretamente da tela e começa a falar com você, jogador. Em algumas dessas interações, ela faz perguntas de todos os tipos, aonde você, com os comandos limitados para se comunicar, responde com “afirmativo” ou “negativo”
coisas como “você é uma criança?”, “você é um adulto?”, “você tem minha idade?”, “você trabalha?”, “você gosta do seu trabalho?”. Essas perguntas estabelecem a relação de vocês dois.
Metade do jogo é sobre ensinar nossa robozinha a conviver em sociedade em diversos contextos enquanto ela interage com os moradores da ilha. Aqui vamos ter várias pequenas histórias envolvendo os moradores da ilha e o governo, até estourar num climax.
Você precisa ensinar a Josette que é importante tomar banho para ser agradável perto dos outros, que há momentos que se resolvem com gentileza e outros com um tanto de agressividade, tudo isso com a comunicação limitada que o jogo impõe.
No meu jogo, Josette aprendeu desde coisas básicas como dar bom dia a conceitos profundamente humanos como luto.
No final foi revelado que Josette me enxergava como um pai. Provavelmente se eu falasse que era uma criança da idade dela ela teria outra percepção de mim.
Uma revolução acontece na ilha, você perde o pássaro que intermediava a comunicação entre você e Josette e a partir dali quase todo o resto do jogo são cutscenes.
A proposta do jogo é, depois de você ter criado a menina, ela vai ter que se virar no mundo.
O que legitimamente me fez ficar engajado, aflito e me emocionar com toda a narrativa no final
de maneiras executadas muito diferentes, ambos os jogos propõem que você estabeleça uma relação com os personagens e isso é refletido no jogo.
Eu enxerguei Reginaldo como uma figura pura, que se você faze-lo um assassino, assim ele será. Josette também é uma figura pura, o jogo todo é uma analogia a crescimento e Josette irá agir de acordo com o que você a ensina. No fim das contas, criei laços com duas figuras fictícias e me cativei de maneira diferente com ambas.
Bem Feito em seu cerne é um jogo muito simples, mas quanto mais via pessoas jogando e a forma com que interagiam com o jogo de maneiras diferentes, mais eu enxergava nessa camada de simplicidade um devaneio interessante sobre nossa relação com jogos.
No ponto de vista do personagem Reginaldo, Bem Feito seria um jogo muito tranquilo se eu simplesmente largasse ele depois do final bom. Ele estaria lá com seus amiguinhos vivos e sem minha presença, que acabou sendo destrutiva.
No final de Wonder Project J2, Josette vai embora viver sozinha, depois de ter salvo o mundo de uma imperatriz maligna com os seus ensinamentos, ela vai seguir em frente sem sua ajuda.
Adorei ser o pai da Josette no joguinho e ter sido um escroto com Reginaldo em nome de ganhar conquista no videogame e procurar conteúdo extra, porém, precisamos saber quando dizer adeus.