Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Desenvolvido pelo estúdio coreano Shift Up, Stellar Blade despertou muita curiosidade do público. Naturalmente que o que mais chamou atenção foi o apelo estético da protagonista, obra do artista Kim Hyung-tae, já conhecido por sua arte com apelo sexualizado.
Conforme novos materiais de divulgação do jogo foram apresentados, ficou evidente que o jogo era mais que isso. Por ser um fã de jogos de ação nesse estilo e também das referências usadas pelo criador do jogo, como Nier: Automata, fiquei curioso para saber: o que de fato é Stellar Blade?
Em um futuro distante, a Terra foi devastada por criaturas monstruosas chamadas Naytibas. Após a sua quase extinção, o que sobrou da humanidade fugiu para uma colônia no espaço.
A Colônia envia o Sétimo Esquadrão em uma tentativa definitiva de recuperar o controle da Terra, eliminar os Naytibas e restaurar a humanidade.
No controle de EVE, uma das agentes enviadas nesse ataque aéreo, você vê toda a sua equipe ser eliminada, sobrevivendo apenas a protagonista e sua companheira Tachy.
Após uma breve introdução e seu primeiro confronto contra os Naytibas, EVE e Tachy são derrotadas por um Naytiba Alfa não identificado. Após ser resgatada por Adam, EVE busca investigar e se vingar do Naytiba que as atacou, bem como concluir sua missão de destruir o restante dos monstros e recuperar a Terra para os humanos.
Stellar Blade é um jogo de ação com um ritmo cadenciado. Ou seja, é necessário entender o ritmo que os inimigos atacam ou se defendem, bem como gerenciar sua defesa e dominar mecânicas como parry e esquiva.
Nesse ponto, ele se inspira em Sekiro: Shadows Die Twice, Nier: Automata, God of War e mais outros jogos do gênero. Ele fica em um meio termo entre o hack n’ slash, foco em duelo e gerenciamento de habilidades.
Além dos ataques básicos, parry e esquiva, Eve conta com árvores de habilidades que fornecem melhorias para ela e desbloqueia habilidades. As habilidades não possuem cooldown, apenas consumindo energia. São dois tipos de habilidades: um que consome energia abastecida quando você ataca ou executa parry e outro que consome energia abastecida quando você se esquiva.
Além disso, você eventualmente consegue um ataque a distância que utiliza diversos tipos de munição, como metralhadora, escopeta, mísseis, etc. Cada tipo de ataque tem um número limitado de munição que você compra nas máquinas de venda ou encontra pelo mapa.
Como equipamentos, você conta apenas com uma espada. Mas pode equipar até duas exoespinhas, que dão bônus de acordo com o seu estilo de jogo, como foco em habilidades, ataques físicos, defesa, etc. Também é possível equipar componentes, que fornecem alguns bônus como velocidade de ataque, aumento de dano crítico, maior capacidade de escudo, entre outras vantagens.
Stellar Blade conta com sistemas já utilizados em inúmeros outros jogos, então é fácil se familiarizar com ele. Mas além disso, sinto que os sistemas são simples e bem feitos a ponto de também serem acessíveis para jogadores novatos no gênero.
Essa diversidade de sistemas também é o que garante uma variedade de formas de se jogar Stellar Blade. O importante quando um jogo conta com essa diversidade de mecânicas é que elas sejam úteis e intuitivas.
Ainda mais se tratando de um jogo que conta com apenas uma arma, são os equipamentos secundários e árvores de habilidade bem construídas que proporcionam ao jogador recursos para que ele jogue da maneira mais adequada.
E isso funciona muito bem em Stellar Blade. Lógico que algumas habilidades acabam sendo essenciais para qualquer build, mas você consegue equipar um kit de equipamentos que favoreça o seu estilo de jogo.
Prefere abusar de habilidades ofensivas? Você pode equipar itens que aumentam o dano das habilidades e favoreçam a recuperação de energia. Gosta mais de duelos e ataques normais e ágeis? Uma boa ideia pode ser equipar itens que aumentam velocidade de ataque com dano de ataques críticos. Gosta de decorar sequências de combos? Também é possível aumentar o dano deles.
O jogo permite experimentar com diversos tipos de builds e encontrar aquela que faça mais sentido para você. Não existe uma maneira “correta” de se jogar, apenas a que for mais confortável para o jogador.
Naturalmente que em algumas situações, o jogo favorece que você jogue de uma maneira específica. Como por exemplo um boss que em determinado ponto conseguia se defender de habilidades de alcance curto.
Mas no geral, o jogo dá bastante opções e praticamente todas funcionam. E funcionam mesmo, devido ao polimento do jogo. Outro ponto que considero fundamental nesse estilo de jogo é ser bem polido, ter qualidade técnica.
E com relação a esse ponto, Stellar Blade me surpreendeu. Vindo de um estúdio “novato” na indústria, tendo como última experiência o jogo mobile Goddess of Victory: Nikke, que tem uma proposta totalmente diferente, fiquei surpreso que eles conseguiram desenvolver um jogo nesse escopo com esse nível de polimento.
Eu não tive problemas com bugs ou hitboxes incoerentes nos combates. Eu só precisei me acostumar com um leve input lag que o jogo tem, que de acordo com o diretor do jogo foi intencional para não prejudicar as animações da personagem.
Mas fora isso, o combate foi bastante prazeroso e divertido, sem me frustrar com uma hitbox problemática ou uma IA ruim dos inimigos. E isso é fundamental para a experiência com jogos desse tipo.
O nível de dificuldade também é bem ajustado, não sendo muito desafiador para quem já está habituado com jogos desse gênero. Ele pode ser mais desafiador para novatos, mas conforme você avança no jogo e libera novas habilidades, equipamentos e domina melhor suas mecânicas, ele fica mais tranquilo.
No geral a minha experiência com a jogabilidade dele foi muito positiva. Acho que o mais importante nesse tipo de jogo é ser prazeroso de se jogar, se sentir desafiado, mas ao mesmo tempo não se sentir frustrado.
Eu gosto desse gênero de jogos de ação por ele incentivar o aprendizado e que você entenda as mecânicas do jogo e o comportamento dos inimigos. E apesar de Stellar Blade não inovar nesses quesitos, ele faz isso com qualidade, o que pra mim é muito mais importante que tentar reinventar a roda.
O meu único problema com o jogo foram os segmentos de plataforma. Em alguns momentos precisamos saltar de um ponto para outro e no geral essa experiência foi um pouco frustrante. Os saltos nesses segmentos não são muito precisos e pra falar a verdade são trechos que não são divertidos.
De acordo com o diretor Kim Hyung-tae, uma das principais inspirações para Stellar Blade foi uma greve de taxistas, presenciada por ele. Essa greve foi motivada pelo avanço de carros autônomos. Esses trabalhadores temiam ser substituídos por essa tecnologia e por conta disso resolveram se mobilizar.
O desenvolvimento de tecnologias de Inteligência Artificial, e da automação em diversas profissões, é uma preocupação hoje no mundo todo. E esse tema acaba se refletindo em filmes, livros, jogos, etc.
Em Stellar Blade, essa temática é abordada. O transhumanismo, a ideia do uso de tecnologia para aprimorar os seres humanos, é notado o tempo inteiro. Vemos diversos humanos com partes robóticas em seus corpos, por exemplo.
Eventualmente vamos sendo apresentados ao conceito principal do jogo, a problemática levantada pela greve de taxistas sobre a substituição dos seres humanos por máquinas e inteligências artificiais.
Outra inspiração para o jogo é a franquia Nier, isso dito pelo próprio diretor. É importante deixar claro: Stellar Blade passa longe, mas muito longe, da densidade da obra de Yoko Taro. E isso não é um problema.
Yoko Taro está há muitos anos desenvolvendo o cânon de sua obra e é natural que Stellar Blade não esteja no mesmo patamar. Mas é importante destacar isso para não criar muitas expectativas em quem curte Nier.
Aqui a história é muito mais contida, sem elementos metanarrativos. Isso quer dizer que você não precisa procurar longos ensaios de 8 horas no Youtube explicando todas as referências e simbolismo.
Mas afinal, a história é boa ou ruim? Bom, ela é “ok”. Stellar Blade usa e abusa das suas referências, como o citado Nier. E como diria o podcaster e dublador Leonardo Kitsune: “tudo na cultura mundial volta para três coisas: Evangelion, Racionais e Chaves”. E sim, o jogo tem referências à Evangelion.
Ou pelo menos bebe das mesmas referências, adotando diversos simbolismos judaico-cristãos. Aliás, esse é um ponto onde acho que o jogo se perde. Essa necessidade de trazer todas as suas referências, muitas vezes de maneiras pouco sutis, prejudica um pouco a identidade do jogo.
É um jogo sobre transhumanismo e sobre inteligências artificiais, mas de repente você tem diversos simbolismos religiosos e algumas decisões narrativas que parecem incoerentes com aquele mundo que estava sendo apresentado até então.
E a falta de sutileza de algumas dessas referências entrega facilmente alguns pontos chave do roteiro. O fato da protagonista se chamar EVE e seu companheiro Adam, para nós que estamos inseridos num contexto de um país cristão, entrega boa parte do roteiro.
As partes mais sutis do roteiro acabam sendo mais interessantes, na minha opinião. Por exemplo, no jogo existem inúmeros documentos, arquivos e objetos deixados pelos humanos que ficaram na Terra, que são estranhos para EVE. Isso porque ela nasceu e foi criada na Colônia, bem longe do planeta.
E o fato de ela no início ser uma pessoa que parece alheia a tudo ao seu redor e coletar esse “conhecimento” traz desenvolvimento para ela, para sua relação com outros personagens e até mesmo para um dos desfechos da história, dá uma camada interessante nesse simbolismo de ela se chamar “Eva”.
Eu não sei se isso foi intencional, mas não deixa de ser algo que eu reparei e que é algo que pessoas que conhecem tradições judaico-cristãs vão sacar mais facilmente.
Talvez a história nem seja o foco principal do jogo, ou talvez seja a inexperiência dos desenvolvedores em jogos que precisam ter um foco maior na narrativa. Mas Stellar Blade apresenta uma história apenas está ali para cumprir o seu papel em um jogo que precisa contar uma história.
Enquanto o marketing do jogo foi bastante direcionado para a personagem EVE, suas roupas (e a falta delas), fiquei curioso sobre como seria esse mundo. No geral o jogo faz as coisas bem, apesar de não contar com uma direção de arte que seja muito marcante.
Os cenários são bem feitos e o jogador será apresentado para uma variedade de cenários, apesar de a Terra em si ser um grande deserto. Além da cidade de Xion, que seria o seu hub principal para onde você vai sempre retornar entre uma missão e outra, há também ruínas de cidades, laboratórios secretos e até mesmo estações espaciais.
Os gráficos são bonitos e alguns cenários são bastante interessantes. Um cenário que destaco e que gostei bastante é inspirado em antigas casas orientais, contando até mesmo com um jardim interno.
Mas os cenários no geral foram bem feitos, não aparentando ser um amontado de assets jogados de qualquer maneira. Um detalhe que notei e acho interessante citar sobre os cenários é a falta de paredes invisíveis. Geralmente jogos de orçamento mais modesto utilizam esse recurso.
Em Stellar Blade a maior parte do cenário você pode atravessar. Não é um problema se utilizasse esse recurso, até mesmo para economizar no orçamento, mas mostra que esse foi um detalhe que os desenvolvedores deram atenção.
O design dos personagens acho que não é novidade para ninguém. Como em muitos jogos desse tipo, os personagens principais recebem um cuidado maior, enquanto aqueles “NPCs” costumam ter modelos mais simples.
E acontece o mesmo em Stellar Blade. Naturalmente que EVE foi quem recebeu maior atenção, tendo um modelo mais detalhado e dezenas de roupas diferentes para a protagonista.
Como já visto nos materiais promocionais, boa parte tem um apelo mais sexualizado e apelativo, mas existem outras roupas que mostram menos o corpo de EVE. Incluindo uma roupa inspirada no filme Kill Bill, aquela icônica roupa amarela que Uma Thurman utiliza.
Os inimigos também receberam cuidado e eu gostei do design deles. Os Naytibas são monstruosidades e vários deles tem formas de animais, como grilos e touros, enquanto outros têm um aspecto mais “alienígena”.
A trilha sonora do jogo chama atenção com composições muito boas. Boa parte das músicas foram compostas em parceria com o estúdio de Keiichi Okabe, compositor das icônicas músicas de Nier.
Okabe em si não teve participação na trilha-sonora, mas em algumas delas é bastante visível a inspiração. Principalmente em músicas que contam com vocais mais suaves e calmas.
Outras músicas transitam entre o pop, kpop e até metal. Apesar das composições serem boas, acho que faltam momentos marcantes que façam com que elas grudem na nossa cabeça. O que faz algumas músicas serem tão icônicas, e ficarem marcadas na memória, é o momento que elas tocam.
Pense por exemplo como você automaticamente lembra do final de Metal Gear Solid: Snake Eater quando ouve Way To Fall. Ou quando toca Hopes and Dreams e toda sua trajetória em Undertale passa diante dos seus olhos.
Stellar Blade peca em criar momentos memoráveis e por conta disso as músicas, por mais que sejam boas, não criam “aqueles momentos”, aquelas memórias que teremos sempre que ouvirmos uma das músicas do jogo.
É lógico que isso tem potencial para ser melhor desenvolvido na sequência do jogo. Apesar dos tropeços, o jogo ainda acerta mais que muitos jogos de times mais experientes.
Ok, precisamos conversar sobre isso. Stellar Blade é um bom jogo que comete alguns tropeços, mas no geral apresenta uma experiência bastante positiva. Além disso, deixa espaço para que ele possa fazer tudo muito melhor em uma sequência.
É um jogo sobre controlar expectativas. A Shift Up resolveu lançar o jogo em um momento onde uma parte dos jogadores está se dedicando a uma patética tentativa de reviver o Gamergate e de “combater a cultura woke”. E Stellar Blade ficou no meio desse fogo cruzado.
Antes mesmo da demo do jogo ser liberada, ele foi cooptado como o Santo Graal anti-woke, sendo até mesmo citado como o jogo do ano. E por mais que essas pessoas gritem “tirem a política dos meus joguinhos”, isso é um movimento puramente político e ideológico.
Por outro lado, outras pessoas viram o material promocional do jogo e a hiperssexualização de EVE e já cravaram que seria o maior desastre do ano, um jogo feito apenas para agradar adolescentes tardios em uma situação de eterna puberdade.
Bom, os dois lados estão errados. Enquanto ele passa longe de ser o jogo do ano, também de forma alguma é um jogo ruim. Ele tem algumas falhas, mas ainda é plenamente possível se divertir com ele.
E pra falar a verdade, acho que ele demonstra um amadurecimento da Coréia do Sul com relação a jogos single player. O país é tradicionalmente conhecido por seus jogos mobile, MMO’s e também pelo seu cenário competitivo de altíssimo rendimento, como em League of Legends.
Curiosamente, enquanto desenvolvia essa análise, o governo sul-coreano anunciou a ampliação no investimento na indústria de jogos, focado principalmente em jogos para consoles. Isso revela a percepção dos coreanos no potencial de criar jogos com experiências single player.
Os debates sobre hiperssexualização não são uma novidade. E também não é algo 100% ligado com à cultura coreana. Basta olhar para Lies of P, que tem uma abordagem bem diferente nesse aspecto.
Essa discussão sempre irá existir, mas dessa vez coincidiu com esse movimento “anti-woke”, que em até certo nível é liderado por um senhor de quase 60 anos de idade, ex-funcionário da Blizzard e que conta com um histórico de críticas de pessoas que trabalharam com ele.
Sendo bem claro, EVE é hiperssexualizada? Sim. É intenção do diretor do jogo transformar isso em um movimento contra a “agenda woke” dos games? Não. Se incomodar com essa representação feminina é algo válido. Mas sendo sincero, para mim é uma representação tão forçada que é tudo, menos sensual. As vezes eu acho até cômico.
O que você pode esperar de Stellar Blade então? Um jogo de ação com mecânicas bem polidas, que não é excepcional em nada do que faz, mas que ainda vai te divertir e tem o potencial para ser um jogo muito melhor na sua sequência.
Controlando suas expectativas, tanto as boas quanto as ruins, é um jogo que provavelmente você vai curtir jogar. Tendo isso em mente, avalio minha experiência como acima das minhas expectativas. De verdade, eu não esperava que ele fosse melhor do que eu imaginava assim, apesar dos seus tropeços.
Ah, e deixo como recomendação um vídeo sobre male gaze, que aborda um pouco essa representação feminina que normalmente é direcionada para o público masculino:
Stellar Blade
Sony Interactive Entertainment
Shift Up
Playstation 5