Coralina: A Memory Tale – identidade e amadurecimento

Por Arthur Tayt-Sohn

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge

Bom, vamos começar do início. Muito antes de um bilionário mimado comprar uma das maiores redes sociais do mundo e a destruir, existia por lá uma comunidade de entusiastas por videogames independentes.

Lógico que não era o lugar mais perfeito do mundo, mas era frequentado por muitas pessoas criativas e com vontade de se expressar. Conheci muitas pessoas incríveis e sou grato por ter tido a oportunidade de conhecer cada uma delas.

Ali em meados de 2023, surge uma dessas pessoas. O Gabriel, nosso Gab Maki, aparece com o seu jogo Coralina. Eu não me lembro exatamente em qual momento eu conheci o Gabriel, e peço desculpas porque minha memória nunca mais foi a mesma depois da COVID, mas felizmente o falecido passarinho azul promoveu esse encontro.

Eu tenho um interesse particular em jogos feitos por equipes muito pequenas, e até mesmo solo devs. Acho que existe um tom muito intimista em jogos desse tipo, principalmente os que são focados em narrativa.

Coralina era um desses jogos. Por uma série de circunstâncias ele acabou chamando a atenção e teve uma boa recepção para um jogo independente brasileiro. Tive a oportunidade de jogar na época e fiquei bastante curioso sobre qual seria o próximo passo do Gabriel no episódio seguinte.

Não vou falar sobre o primeiro jogo, porque a ideia aqui é falar sobre o estágio atual da história. E além disso, o jogo é bem curtinho e você pode conferir na Steam e conhecer melhor. Inclusive, recomendo que joguem o primeiro antes de começar A Memory Tale, pois é uma sequência direta.

As Terras Póstumas

O segundo jogo dá sequência à jornada de Coralina pelas Terras Póstumas. Agora acompanhada de Cometa, a aspirante a cineasta deve ir até o Inferno para tentar resgatar seus amigos.

A Memory Tale segue os mesmos moldes do primeiro jogo, sendo um pouco mais linear. O que é visível no segundo jogo é a evolução que ele teve para o primeiro jogo. Eu tive oportunidade de conversar com o Gabriel, menos do que eu gostaria por não estar mais tão cronicamente online, e de testar algumas versões beta que ele me confiou para opinar.

E em cada versão do jogo era visível o quanto o Gab foi melhorando em seu ofício de desenvolvedor de jogos. Porque é um ofício, na verdade. E isso requer estudo, prática, experimentar, errar e consequentemente evoluir.

Coralina e Caronte

Eu sempre enxerguei o Maki como uma mente inquieta, com muita vontade de se expressar. E muitas vezes das formas mais abstratas e sem compromisso com a lógica e a realidade possíveis. E eu gosto disso.

E as Terras Póstumas são o lugar perfeito para que isso ocorra. Sendo o lar dos alquimistas, que possuem a capacidade de manipular a própria matéria e a realidade, o jogo manipula diversas referências das artes para criar um universo único.

O repertório e as influências do desenvolvedor produzem um jogo que mistura diversos elementos das artes: fotografia, pintura, cinema, literatura, animes e música. Eu tenho um palpite, sem nenhum respaldo científico, de que por sermos um país que foi colonizado e que recebeu tantas influências diferentes, isso acaba favorecendo uma ressignificação dessas referências, que produz novas obras bastante singulares.

É o que permite, por exemplo, que Coralina encontre Virgulino aguardando para embarcar até o Inferno no barco de Caronte. Ou que Orpheus parta para resgatar Eurídice no espaço pilotando a Swordfish, nave icônica do anime Cowboy Bebop.

Orpheus e nave espacial

A Memory Tale brinca o tempo inteiro com diversos estilos de arte. Os retratos dos personagens variam de desenhos, pixel art, colagens, fotografias e até mesmo caricaturas. Em um mundo tão abstrato e surrealista como As Terras Póstumas, a arte floresce. Não à toa esse mundo foi concebido pela mente de outro artista. Não entrarei em detalhes para não dar spoiler.

E assim como o jogo conta a história de Coralina, e agora com um foco maior em Cometa, em um processo de autoconhecimento e amadurecimento, A Memory Tale revela um um desenvolvedor de jogos mais maduro e seguro em seu processo criativo, que revela nesse segundo jogo um texto com, além de mais qualidade, sensível e intimista.

Desde as builds que testei do jogo, até o lançamento final, foi perceptível as melhorias nas artes e, principalmente, na narrativa. O segundo jogo é muito mais seguro no seu texto e, ao mesmo tempo que dá uma direção para a história de Coralina, abraça o surrealismo e a abstração.

Coralina e Cometa conversando e uma lua ao fundo

Um dos meus trechos favoritos do jogo é a releitura que ele faz do mito de Orpheu e Eurídice. O simbolismo de perder seu status de “indivíduo” por ser tornar uma “musa”, um conceito, e por conta disso não poder mais existir como matéria, foi uma ressignificação extremamente criativa da história. E isso com a nave do Cowboy Bebop, claro.

Outro trecho que vale a pena destacar é a vila dos bichos, que se permite utilizar humor em seu texto, algo que eu gosto bastante, e brincar com situações completamente absurdas.

Vila dos Bichos

O texto do jogo é bastante introspectivo e intimista, explorando melhor os personagens principais. Principalmente Cometa, que passa por um processo de encontrar sua identidade. E o jogo também é criativo em inverter a lógica dessa busca por identidade.

Isso porque Coralina, como mulher trans, no jogo já passou por esse processo de busca pela identidade e agora é ela quem serve de guia para Cometa. E é como se o Gab também estivesse passando por esse processo de encontrar sua identidade como desenvolvedor de jogos.

Em A Memory Tale conhecemos mais das referências e bagagem do desenvolvedor. É algo bastante fácil de perceber quando jogamos algo que foi feito por uma pessoa, ou por uma equipe bem reduzida. Dá até para dizer que trata-se de uma autobiografia lúdica. E eu nem sei se esse termo existe.

Coralina e uma estátua

E não é fácil manter a coesão dentro do jogo utilizando de tantas referências tão distintas umas das outras. Veja bem, Coralina mistura elementos de diversos movimentos artísticos, mitologia grega, literatura brasileira, bandas de rock alternativo, etc.

Ao mesmo tempo, o jogo se preocupa com a qualidade de seu texto e de desenvolver a relação entre os personagens e esse mundo. E do primeiro jogo para o segundo, há um grande salto de qualidade, que realmente me parece vir de um amadurecimento e maior segurança do Gab.

Até o final da jornada

Eu sei que esse texto parece totalmente “pessoal”, e de fato é, mas é inevitável não falar de forma mais pessoal sobre um jogo que venho acompanhando há um bom tempo e observando o seu desenvolvedor evoluindo com o tempo.

Coralina: A Memory Tale é uma jornada sobre amadurecimento, identidade e sobre conseguir se transformar em sua melhor versão. É algo bem simbólico como a alquimia também representa esse processo.

O Autor

Além disso, é também a jornada do próprio desenvolvedor em um processo de se tornar cada vez melhor no seu ofício, na sua “alquimia”, e até mesmo no desenvolvimento como indivíduo. Um processo que todos nós passamos ao longo da vida.

Aguardo o final dessa jornada e espero poder continuar participando dessa caminhada.

Nome do jogo:

Coralina: A Memory Tale

Publisher:

ZNT Productions

Desenvolvedora:

Gabriel Maki

Plataformas Disponíveis:

PC

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