Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Desenvolvido pelo Nomada Studio, do aclamado GRIS, Neva é o mais novo trabalho do estúdio catalão. Após a recepção extremamente positiva do jogo anterior, é natural que Neva tenha sido aguardado com muita expectativa, principalmente após sua revelação exibindo sua estonteante direção de arte, marca registrada do estúdio.
Tivemos a oportunidade de jogar antecipadamente e contamos agora se Neva tem a capacidade de emocionar os jogadores como seu antecessor.
O jogo se inicia com uma breve animação mostrando a protagonista Alba e dois lobos que a acompanham, sendo atacados por uma imensa sombra corruptora. Após tentarem resistir, o lobo adulto acaba morrendo. Alba e o pequeno lobo, a filhote Neva, se veem sozinhas vivenciando esse momento de luto.
Alguns meses se passam e o jogo se inicia no verão. As duas acordam sob uma imensa e colorida árvore e então a nossa jornada se inicia.
Diferentemente de GRIS, o segundo jogo do estúdio Nomada conta também com combate. Mas ao mesmo tempo ele mantém os seus aspectos de jogo de plataforma e os evolui. E o próprio combate contribui com essa evolução.
As mecânicas do combate de Neva são bastante tradicionais e até simples. Alba pode utilizar ataques normais de espada e uma esquiva que conta com uma breve janela de invencibilidade. Durante todo o jogo ela não recebe nenhuma nova habilidade diretamente.
Por outro lado, a loba Neva adquire novas habilidades conforme ela amadurece e se torna adulta. E são essas mudanças que dão novas habilidades para Alba e também introduzem novas mecânicas.
Essa abordagem também tem um papel narrativo no jogo, visto que esse é um jogo sobre a transformação de Neva em um filhote indefeso em uma criatura poderosa, sendo Alba sua mentora.
Devido a essa mudança de GRIS, um jogo de plataforma sem combate, para Neva, o estúdio Nomada contratou um designer de combate para ajudar no desenvolvimento, já que não era a especialidade deles.
Isso ajudou não só a criar as mecânicas, mas também a deixá-las polidas e com a dificuldade no nível certo, para que não causasse frustração nos jogadores. Até porque a intenção do estúdio nunca foi criar um jogo que fosse extremamente punitivo.
Apesar disso, o combate de Neva não é exatamente simplista, tendo suas nuances. O combate do jogo exige que o jogador tome iniciativa. Isso porque não existem itens de cura e você recupera sua vida mantendo o fluxo constante de combate com os inimigos, já que você se cura atacando.
Também é necessário administrar quando utilizar Neva a seu favor, seja mantendo ela por perto para fortalecer seus ataques ou utilizando a mordida dela para imobilizar alvos mais ameaçadores, isso mais posteriormente no jogo.
Não é um combate de difícil aprendizagem e também não é dos mais desafiadores, mas pode ser que surpreenda um pouco os jogadores de GRIS, principalmente aqueles que não estão tão familiarizados com jogos de combate.
Por outro lado, o estúdio não abandonou suas raízes de plataforma, que são uma das principais características do jogo anterior. Pelo contrário, em Neva esses segmentos são ainda mais desenvolvidos. E as mecânicas utilizadas em combate adicionam ainda mais camadas nesses trechos do jogo.
Houve uma significativa evolução nos elementos de plataforma do jogo e, conforme o jogo avança, eles vão se tornando mais complexos. E como em Neva é possível morrer, existem novos segmentos onde há riscos envolvidos, exigindo mais do jogador.
Alguns trechos envolvendo escaladas e saltos em plataformas em altura me lembraram Celeste. São momentos que exigem domínio dos movimentos e saltos precisos. Mas além disso, o jogo traz novos elementos criativos e que adicionam camadas de desafio.
Um exemplo disso é um trecho onde a tela é espelhada e ao invés de acompanhar o movimento de Alba, você deve acompanhar o reflexo dela nesse espelho, já que algumas plataformas são visíveis apenas no espelho.
O estúdio Nomada não apenas introduziu novas mecânicas no seu segundo jogo, mas aprimorou ainda mais a principal mecânica do seu jogo anterior, incluindo novos elementos e mais camadas de desafio.
Isso com uma curva de aprendizagem que vai introduzindo novas mecânicas e desafios, além de maior complexidade, conforme o jogo avança. E isso é bem cadenciado considerando a duração do jogo, que leva cerca de 4 a 5 horas para ser completado.
Desde GRIS, o estúdio Nomada gosta de trabalhar com uma narrativa focada em simbolismo e com pouquíssimo, ou nenhum, uso de textos escritos. Neva mantém essa mesma abordagem.
Porém, enquanto GRIS simboliza os cinco estágios do luto, de uma forma bastante sensível diga-se de passagem, Neva aborda a vida e maternidade ou paternidade. Alguns dos desenvolvedores do estúdio citam suas experiências com a paternidade como uma das suas grandes influências.
Para representar isso, Neva utiliza como simbolismo as quatro estações do ano: verão, outono, inverno e primavera. Durante a passagem das estações, acompanhamos o crescimento da loba Neva. Lembremos que esse é um jogo que leva o seu nome.
Passando pelo verão, representando a alegria e despreocupação da infância, indo pela adolescência do outono, onde começamos a ver mudanças radicais em nossa vida e comportamento, o inverno da vida adulta, das despedidas e até mesmo de uma certa melancolia que essa mudança de vida traz até chegarmos, por fim, à primavera, onde há o “florescimento” do indivíduo.
Ao longo dessa jornada, acompanhamos essa mudança na vida de Neva e em como a sua relação com Alba vai mudando com o tempo. Até mesmo mecanicamente vemos essa influência. O lobo indefeso vai se tornando mais feroz e protetor com o passar do tempo, o que interfere na própria jogabilidade.
E é importante destacar que não existem diálogos no jogo. Tudo o que acontece precisa ser observado. Enquanto o texto pode ser importante, e muitos jogos se destacam pela qualidade do seu texto, há muito valor em jogos que sabem utilizar uma narrativa não-verbal.
Isso porque muitas vezes quando o jogo conta sua história por textos e diálogos, acabamos deixando escapar detalhes que não são ditos ou explicados se nos apoiarmos demais somente no que é posto em palavras.
E quando nada é dito, há mais espaço para observação e contemplação. Há a oportunidade de prestar atenção nos detalhes. Como por exemplo na forma que Alba chama Neva, uma das únicas palavras ditas no jogo, e que expressa perfeitamente o sentimento que a personagem está transmitindo naquele momento. Não é preciso um diálogo ou um narrador para explicar.
Esse tipo de abordagem também pareceu ter facilitado com quem eu me identificasse com as situações do jogo. Quando utilizamos um texto e determinamos exatamente o que um personagem está pensando ou sentindo, às vezes nos distanciamos deles.
No momento em que precisei interpretar os simbolismos do jogo e fazer um exercício de abstração, consegui fazer uma relação do relacionamento entre Alba e Neva com a relação do meu pai com a minha avó. E isso faz todo sentido se pensarmos que maternidade é um dos temas principais do jogo.
O que é interessante porque poucas vezes consegui me identificar a nível pessoal com jogos produzidos por europeus, devido ao imenso abismo das condições materiais em que vivemos, muitas vezes as suas vivências e referências são totalmente diferentes das nossas, no sul global.
Isso leva à uma reflexão que, apesar de tantas diferenças, algumas coisas parecem comuns a nós: a importância de termos uns aos outros para nos apoiarmos nos momentos de adversidade.
E no caso de Neva, a adversidade é a criatura sombria e misteriosa que não tem uma forma bem definida, mas que tem o único objetivo de acabar com a vida no lar de Neva e Alba. Para o estúdio, talvez a sombra seja a pandemia, algo que nós enfrentamos durante alguns anos e que o estúdio também cita como uma referência.
Mas essa sombra também pode ser a destruição do meio ambiente, já que esse inimigo tem o objetivo literal de destruir a vida no mundo do jogo, e que de certa forma conta com apoiadores de modo de vida e produção, da mesma forma que existem “cultistas” dessa escuridão no jogo.
E apesar de todas as possibilidades de abstração que o jogo permite que você tenha, seu tema principal, a maternidade, é bastante fácil de compreender. A história se desenrola de uma forma muito sensível, até mesmo na forma que o jogo lida com questões como a morte.
Assim como GRIS, é inevitável não se impressionar com a direção de arte de Neva. Assim que o jogo foi apresentado pela primeira vez, foi o que me chamou atenção logo de cara. A apresentação visual é uma marca registrada do estúdio.
Neva conta com uma arte que é desenhada a mão pelos desenvolvedores e posteriormente levada para o jogo. A proposta do jogo é apresentar seus personagens e cenários usando um estilo de pintura com “manchas”, sem utilizar muito linhas de contorno, o que provavelmente deve ter sido bastante complexo para animar.
Os desenvolvedores não escondem a inspiração do jogo nas animações japonesas, mas sobretudo o Studio Ghibli. É bem perceptível essa inspiração e é inevitável não lembrar de Princesa Mononoke.
Porém, o jogo ainda possui uma identidade visual bastante única e eu tenho um palpite sobre a razão disso. O estúdio está localizado em Barcelona, na região da Catalunha na Espanha. Uma região com uma forte ligação com as artes e lar de um dos maiores arquitetos do mundo: Antoni Gaudí.
Neva traz muito do estilo artístico da região e da arquitetura de Gaudí. O arquiteto valorizava as formas geométricas, o uso de arcos e a natureza. Seus trabalhos estão intimamente ligados com a natureza. Além disso, ele sempre buscava valorizar a luz natural e as cores. O jogo usa e abusa dessas características artísticas, criando visuais lindos e únicos.
E, curiosamente, Gaudí também foi influenciado pela arte oriental no início de sua carreira. Tendo tudo isso em mente, é fácil entender de onde vem a inspiração para a direção de arte de Neva.
Além disso, é notável a inspiração na arquitetura de Gaudí nas construções do jogo, que valorizam a geometria e utilizam os famosos arcos que o arquiteto tanto adorava. E se você ainda tem dúvidas sobre o quanto a cidade de Barcelona ama arte e as cores, dê uma procurada por imagens do Festival de Gràcia que ocorre em Barcelona.
Essas inspirações criam um jogo visualmente único e trazem uma forte identidade da região da Catalunha. E é interessante notar como uma identidade local pode ser tão forte. Neva e Blasphemous são jogos do mesmo país, mas possuem referências completamente diferentes.
Isso porque o estúdio The Game Kitchen fica localizado em Sevilha, onde a arquitetura tem outras referências, sobretudo na arquitetura da Igreja Católica e também dos mouros, como eram conhecidos os árabes que habitavam a região há séculos atrás.
Neva é um jogo visualmente estonteante. E não ter que me preocupar com diálogos me permitiu apreciar cada detalhe de sua direção de arte, contemplar os seus ambientes e me aprofundar nas referências que os desenvolvedores trouxeram.
E claro que me permitiu também apreciar a trilha sonora impecável, mais uma vez executada pelo grupo Berlinist, que também trabalhou em GRIS.
A trilha sonora mantém boa parte da identidade do jogo anterior, com músicas suaves, relaxantes e também emotivas. A principal diferença é o uso de novos instrumentos e trilhas mais agitadas, visto que Neva conta com combate e é necessário ter músicas que transmitam os momentos de tensão.
O conjunto da arte visual e da trilha sonora do jogo, por si só, já tornam o jogo fascinante. Mas o fato de isso não apenas ser de muita qualidade e ambientar bem o jogador na história, mas também trazer a identidade da região dos desenvolvedores, enriquece muito a experiência.
E fica a sugestão para vocês darem uma olhada mais a fundo nas referências do jogo, principalmente nas obras de Gaudí. Sério, ele foi um cara fascinante.
Neva é uma experiência artística fascinante. Sua breve duração também permite que você consiga um tempinho para apreciar essa experiência, em um momento em que fica cada vez mais difícil nos dedicarmos aos nossos hobbies.
Ele também tem um certo caráter intimista por explorar a maternidade sendo inspirado pela experiência pessoal de alguns dos desenvolvedores, que se tornaram pais em um contexto de pandemia.
E além de uma experiência sensorial, Neva traz uma bela mensagem sobre como a vida sempre se renova. Apesar de todas as dores e sacrifícios, sempre podemos contar que a primavera chegará.
O estúdio Nomada acerta mais uma vez com mais um jogo de grande valor artístico e que tem o poder de inspirar muitas pessoas. Com o padrão de qualidade de GRIS, certamente foi um desafio criar um novo jogo que estivesse à altura do jogo anterior. E esse feito foi alcançado com bastante louvor.
Neva
Devolver Digital
Nomada Studio
PC, Playstation 5, Xbox Series S|X, Nintendo Switch