Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Toda vez que vejo um novo anúncio de um jogo do Kazutaka Kodaka, juntamente com o Rui Komatsuzaki e Masafumi Takada, sempre me dá aquele sentimento de que eles estão tentando recriar a fórmula de Danganronpa de um jeito ou de outro, e com Hundred Line não foi diferente.
Desde o segundo em que bati meus olhos nesse jogo, tudo nele gritava Danganronpa só que com outro nome, inicialmente isso foi algo que me deixou meio desinteressado no jogo logo de cara, por mais que Kotaro Uchikoshi estivesse junto do time também, na minha cabeça seria só mais uma cópia de Danganronpa, um apelo para os fãs dessa franquia voltarem a engajar com jogos do Kodaka depois de seus últimos tropeços.
Mas após realmente jogar o jogo, logo nas primeiras horas eu já pude notar o qual era a visão do Kodaka para Hundred Line, a primeira vista, sim, é muito Danganronpa, os personagens, os cenários, a música, tudo me lembrava Dangan e estava legitimamente com medo do jogo só se escorar nessa falsa nostalgia para prender os jogadores, mas eu estava muito enganado.
Hundred Line se provou, sim, ser algo diferente e único, abraçando o charme de Danganronpa, mas entregando uma experiência muito distinta e refrescante, e principalmente após zerar e conseguir entender o escopo completo desse jogo eu só consigo ficar boquiaberto com o quão insanos Kazutaka Kodaka, Kotaro Uchikoshi e todo o resto do time, são em desenvolver algo dessa escala.
Hundred Line: Last Defense Academy é um jogo adventure que mistura RPG tático e elementos de Visual Novel, desenvolvido pela Too Kyo Games e Media.Vision e publicado pela Aniplex que traz uma equipe de peso para esse projeto, uma colaboração entre Kazutaka Kodaka e Kotaro Uchikoshi, dois escritores lendários, para o que parece ser um grande esforço colaborativo para salvar a Too Kyo Games de uma possível falência, ou pelo menos é o que o Kodaka costuma dizer (espero que ele esteja brincando).
Rui Komatsuzaki e Masafumi Takada também estão envolvidos em Hundred Line, Rui Komatsuzaki com seu icônico character design e estilos extremamente arrojados e Masafumi Takada cozinhou demais nesse jogo, possivelmente um dos seus melhores trabalhos em memória recente, a trilha-sonora de Hundred Line é variada e cheia de carisma e identidade, esse jogo me fez apreciar ainda mais o trabalho do Takada.
Só com isso, Hundred Line já se destacou como uma das melhores experiências desse ano para mim, porém aonde jogo realmente brilha é sua narrativa, algo que eu não fazia ideia que sentiria falta é a escrita do Kodaka, misturando a maneira como ele escreve mistérios, personagens, intrigas e tudo isso misturado com seu senso de humor bizarro fazem de Hundred Line uma das experiências mais autênticas dele.
O jogo se dá início em um lugar chamado Tokyo Residential Complex, onde somos introduzidos ao nosso protagonista Takumi Sumino e sua amiga de infância Karua Kashimiya que vivem pacificamente nesse local, a situação toma uma virada para o sobrenatural quando esse local começa a ser invadido por monstros misteriosos, e Takumi separado de sua amiga, se encontra com uma criatura bizarra, e se vê em uma encruzilhada, sem condições de salvá-la ele aceita a oferta da criatura enfincando uma adaga em seu coração.
Porém, ao fazer isso, sendo separado de sua amiga, ele perde a consciência, e ao acordar ele se vê em uma sala de aula com mais outros 14 estudantes em um mundo desolado coberto em chamas, e assim, Takumi se junta a Special Defense Unit que durante os próximo 100 dias deve proteger essa escola de monstros e invasores, com o objetivo de reencontrar Karua e voltar a sua vida pacifica.
Essa é a grande premissa do jogo, você tem 100 dias no controle de Takumi para conhecer e lutar ao lado de outros personagens para proteger a Last Defense Academy e os mistérios que envolvem tal escola, o porquê dele estar aqui, e como voltar para sua casa e encontrar sua amiga.
Eu particularmente gostei muito da estrutura dessa narrativa, os 100 dias dentro da escola podem parecer muito, mas passam muito rápido, o jogo também pula alguns dias, então na prática você nem acaba jogando os 100 dias de fato, misturando com o fato que o jogo constante te dá free time events, na qual você pode fazer o que quiser, passar tempo com personagens ou explorar o mapa fora da escola.
Esse, inclusive, foi outro elemento que me pegou de surpresa, na hora de explorar o mapa fora da escola, essa exploração é feita através de um mapa de tabuleiro mesmo, com um limite aleatório de quantas casas você pode avançar, casas que te dão certos benefícios, ou te fazem enfrentar inimigos, eu achei uma maneira bem criativa de fazer essa exploração visto o orçamento não muito alto desse jogo, é bem charmoso e eficaz.
Tal qual como em Danganronpa, a escola também possui muitos locais e salas diferentes com vários propósitos, e outras maluquices que o Kodaka inventa, como uma sala gigante que serve só para craftar presentes para os personagens, ou uma sala que tem uma cachoeira no meio, vai entender. Muitas dessas salas não têm muito propósito, e outras são bem úteis, como a sala de treinamento que te deixa praticar contra inimigos em uma máquina de VR e subir o nível das skills dos personagens.
Agora, adentrando mais afundo sobre a narrativa em si, eu obviamente não posso entrar em muitos detalhes sobre o que de fato acontece, mas os sentimentos que tive ao terminar o jogo foram de que o Kodaka e o Uchikoshi juntos tem ideias simplesmente geniais, a narrativa do jogo é construída em volta de muitos mistérios, e quando você pensa que vai conseguir respostas, ele te joga mais mistérios e perguntas, mas o payoff de quando certos plot twist acontecem e aos poucos você mesmo vai construindo a verdade e as repostas na sua cabeça é bem legal.
É claro que não é uma narrativa perfeita, ela tem problemas e seus tropeços, ainda acho que o fato do Kodaka ser tão dependente em amnésia para começar a contar uma história a torna bem previsível e uma ideia já batida, mas por mais que eu não curte muito, ainda é algo que funciona.
Sem entrar em detalhes, mas algumas revelações e plot twists por mais que inicialmente eles sejam muito incríveis e impactantes, depois de pensar um pouco sobre, comecei a notar alguns problemas e inconsistências que me deixaram meio incomodado, e afetam, sim, minha experiência com jogo.
Mas no geral, é sem dúvidas uma das melhores narrativas que o Kodaka já escreveu, por mais que tenha seus tropeços, ela funciona e principalmente o ritmo é ótimo, nunca senti que estava sendo rushado ou lento demais.
Outro detalhes que vale a pena ser mencionado, é de que o jogo tem mais de 100 finais diferentes, mas isso só ocorre após certos eventos do jogo na qual eu não posso comentar, mas eu mesmo não peguei todos os finais, nem mesmo consegui chegar no “true ending” de fato no momento em que escrevo, porque esse jogo é ENORME, eu terminei a primeira parte, por assim dizer, do jogo por volta das 70 horas e ainda tem muito mais coisas para se fazer até terminar tudo de fato.
Eu realmente tiro o chapéu para o Kodaka e Uchikoshi que conseguiram escrever uma história tão densa e extensa assim, novamente eu não joguei os outros finais então é difícil dizer se eles mantêm o mesmo nível de consistência em todas as rotas, mas fica a cargo da comunidade e dos jogadores explorarem todos os finais quando o jogo sair.
Agora falando da jogabilidade, eles terem escolhido um combate de RPG tático me surpreendeu bastante, mas parando para pensar, tematicamente é o que mais faria sentido mesmo. Eu sempre admirei a maneira como o Kodaka e até mesmo o Uchikoshi tratam a parte de gameplay em seus jogos por serem bem diferentes dos que muitos adventures fazem, principalmente Danganronpa, Rain Code e AI: The Somnium Files.
A parte de combate desse jogo foi desenvolvida pela Media.Vision, a mesma desenvolvedora de Wild Arms, eu não tenho nenhuma experiência prévia com outros jogos dessa desenvolvedora, mas tenho minha experiência com outros jogos do gênero, mais com Fire Emblem e Unicorn Overlord recentemente, também já vi comparações com a trilogia Utawarerumono, mas creio que Hundred Line tem uma proposta diferente e mistura outro elemento nessa fórmula, no caso funcionando mais como um “tower defense” do que muitos dos outros exemplos citados.
Na hora da ação, como o nome sugere, temos que defender a escola a todo custo, o combate envolve proteger algumas torres que criam uma barreira em volta da escola, se os inimigos conseguirem destruir essa torre é game over, e muitas das vezes o objetivo em si muda, sendo eliminar todos os amigos, ou apenas eliminar um boss específico, ou em outros mapas o jogador que está na posição de ataque, tendo de atacar uma base inimiga, ou recaptura um certo mapa.
Entrando mais afundo nas mecânicas do combate, um dos grandes aspectos do jogo é simplesmente deixar os personagens morrerem, sim, e o jogo incentiva isso, diferente de outros jogos do gênero aonde se um personagem morre é uma perda para aquele mapa, ou até perder ele para sempre como nas dificuldades clássicas de Fire Emblem.
O jogo cria uma estratégia muito interessante de sacrificar certos personagens, quando um personagem está com a vida baixa, ele ganha a opção de se sacrificar soltando o seu golpe especial, além disso, assim que um personagem morre a barra de especial do jogo chamada de Voltage, enche o suficiente para outro personagem poder soltar o seu especial, e o personagem que morreu volta na próxima onda.
Fora isso, ele funciona de uma maneira mais tradicional mesmo, movimentando os personagens em certos quadrantes, cada golpe tem uma área de efeito variando entre cada um, habilidades passivas, e com um limite de quantas vezes tal personagem pode se mover.
Aprecio muito a criatividade de cada personagem também, cada um sendo bem único em cada função, por exemplo, o protagonista é mais balanceado e tem de tudo um pouco, outros personagens podem criar torretas, outros têm uma moto, ou um carro para se mover, e até mesmo o uso de robôs gigante e muito mais, cada personagem é bem único nesse aspecto.
O jogo também te dá a opção de construir armadilhas pelo mapa e outros elementos que atrapalham os inimigos, como cercas, bombas, apesar de não serem muito úteis num geral, dependendo do mapa e da situação, podem ajudar em alguns cenários.
O senso de estratégia nos mapas não é algo muito elaborado no sentido que não tem um caminho a se percorrer ou obstáculos nos mapas, mas sim funcionando mais como um campo aberto com os personagens de um lado e os inimigos do outro lado, gostaria de ter visto mapas mais bem elaborados coisa que infelizmente não acontece muito por aqui.
Outro aspecto que acho importantíssimo mencionar são os personagens. Kodaka sempre deu um jeito de escrever os personagens mais malucos e escrachados possíveis, e aqui não é diferente, eles são malucos e fora do normal mas também tem algo muito humano sobre eles que eu acho fascinante.
De início eu achei que não fosse gostar muito deles, mas logo depois do começo eu já estava completamente investido nesses personagens. Eu genuinamente gosto muito do elenco desse jogo, cada personagem tem uma gimmick diferente e são tão divertidos de acompanhar.
Até mesmo uma das personagens que ganhou uma certa popularidade por ser maluquinha, que é a Darumi Amemiya, o jogo inteiro ela está neste personagem de maluca doidinha, mas com certas nuances na escrita você consegue ver de certa forma a “máscara” que ela usa, e que por dentro é uma personagem bem humana com suas inseguranças e medos, e cada personagem tem esse nível de nuance que é muito legal de ver.
Um dos aspectos que eu sempre coloco ênfase nas minhas críticas e algo que eu prezo muito em qualquer jogo é a arte, tanto as ilustrações, design de personagem, direção de arte e afins, e aqui não poderia ser diferente.
Rui Komatsuzaki juntamente com todos os outros artistas envolvidos nesse jogo fizeram um trabalho sensacional, eu adoro os designs de personagem do Komatsuzaki e seu estilo caricato, tanto que fiquei surpreso em uma entrevista recente Kodaka revela como ele conheceu o Komatsuzaki durante uma de suas pausa para um cigarro onde ele revelou o desejo de trabalhar como artista, já que ele era conhecido por ser um bom desenhista, mas nunca teve a oportunidade de desenhar em nada profissionalmente até o Kodaka chamar ele para fazer o primeiro Danganronpa, eu achei muito curiosa essa situação.
Mas sobre a arte do jogo, é incrível a quantidade de CGs que o jogo tem, até onde eu me lembre, são mais de 600 Ilustrações diferentes. Eu não cheguei a ver todas, mas do que vi, estão todas bem caprichadas e carregadas de intenções e minúcias bem características do Komatsuzaki e outros artistas.
Indo agora para a parte musical, Masafumi Takada como eu já havia dito antes, cozinhou umas das melhores trilhas sonoras que ouvi em memória recente. O fato dele usar em muitas músicas os mesmos instrumentos e efeitos das músicas de Danganronpa criam esse efeito de nostalgia muito incrível.
Fora isso a trilha sonora é pesadamente carrega de leitmotif, que é sempre algo que eu procuro e aprecio demais em música, a variedade de gêneros é algo presente, e eu sempre gosto de apontar esse fato de que quanto a trilha sonora de um jogo me faz parar tudo pra ficar escutando é por que realmente é algo especial.
Desde que joguei Danganronpa tenho um certo fascínio na maneira como o Kodaka escreve, em sua mentalidade e influências que são bem notáveis, mas o mais importante é a mensagem e a intenção do que ele quer passar quando escreve uma história ou personagem.
Não só com o Kodaka, mas sinto o mesmo com o Uchikoshi e muitos outros escritores, em geral, a arte de transmitir um sentimento ou mensagem através de uma história é algo que sempre me pega e me faz constantemente voltar para essa mídia.
Em conclusão, Hundred Line – Last Defense Academy é uma experiência familiar e, ao mesmo tempo refrescante, que dá para sentir a evolução de todos aqueles envolvidos nesse projeto.
Tanto para fãs de longa data do Kodaka e suas franquias, quanto para quem quer só dar uma olhada nesse jogo, Hundred Line tem muita substância em um jogo bem extenso, mas que capricha em cada aspecto sem ser perfeito, mas o resultado final é bem satisfatório.
The Hundred Line - Last Defense Academy-
Aniplex
Too Kyo Games, Media.Vision
PC, Nintendo Switch