Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Quando eu era criança (não tinha mais que uns 12 anos) meu pai me levou na casa de um amigo onde eles reuniram uma galera para todo mundo aprender a jogar poker. Eu, em meio àquele monte de marmanjo da idade do meu pai, me senti muito adulto e estudei atentamente as regras conforme elas eram ensinadas. Ao final do dia eu tinha aprendido a jogar poker e curiosamente nunca esqueci, mesmo utilizando pouquíssimo esse conhecimento ao longo da minha vida.
Essa história é relevante para All in Abyss: Judge the Fake porque aquele dia, quando meu pai tomou a decisão questionável de me levar pra essa reunião em minha tenra idade, foi exatamente o bater das asas da borboleta para que agora eu pudesse tomar outra decisão igualmente questionável: jogar esse jogo.
All in Abyss é uma mistura peculiar de poker com visual novel. Aqui você acompanha Asuha, uma moça que foi para uma cidade lendária por seus jogos de aposta com consequências altíssimas em busca de adrenalina. Eu adoraria continuar explicando mais da premissa, mas isso aí é tudo. Asuha realmente só vai pra uma Las Vegas distópica – sem lugar pra ficar ou qualquer relação com ninguém – só pela adrenalina de jogar poker e, quem sabe, ficar mais rica.
Além de juízo, Asuha também não tem uma personalidade particularmente agradável. Quando ela perde sua primeira partida contra uma das bruxas lendárias da cidade e se vê sem dinheiro algum, ela só importuna a primeira moça que lhe dá atenção na rua e, sem exagero nenhum, declara que agora elas moram juntas. Tudo que envolve essa introdução parece um sonho febril onde nada faz sentido e você ainda é obrigado a aturar uma personagem que tem zero noção de convivência básica com outras pessoas, então eu tive muita dificuldade de me importar genuinamente com qualquer coisa na história a partir dali.
Com uma fundação tão fraca, a narrativa não consegue construir nada significativo. Existe ali uma tentativa (bem fraca, diga-se de passagem) de comentário social com uma cidade onde os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres, e existe um problema crítico de crime e miséria entre as classes mais baixas. Só que além de algumas alusões a como “o sistema é foda, cara”, nada mais profundo é explorado efetivamente. As relações interpessoais dos personagens também são tão profundas quanto a coordenada Z de cada um, e as tentativas de criar momentos emocionais em meio às batalhas contra as bruxas é feita com uma delicadeza que não surpreende mais, mas ainda dói.
Por mais que a parte visual novel do jogo seja fraquíssima, ela ainda é só 50% do todo. Os outros 50%, porém, não são somente poker. Boa parte do tempo você vai estar, na verdade, jogando um adventure japonês em que você seleciona lugares em uma lista e os visita para progredir a narrativa e chegar no eventual duelo contra a chefe do capítulo. A premissa de todas elas é que, de alguma forma, elas trapaceiam durante as partidas, então você precisa encontrar informações sobre elas e, no momento da partida, usá-las para se defender das trapaças. Esse aspecto de “detetive”, por mais breve e simples que seja, é uma forma interessante de progredir – o que torna uma perda ainda maior que a narrativa seja tão fraca.
Em meio a todo o resto, toda vez que surge algum conflito – seja o principal contra as bruxas ou menores pra encontrar informação – tudo é resolvido em uma partida de poker. A modalidade jogada aqui é Texas Hold’em, mas ela é apimentada com a adição de habilidades que você, uma gênia das apostas, consegue ativar durante as partidas. Essas habilidades não costumam interferir diretamente na forma com que o jogo funciona, optando por te dar vantagens mais individuais como saber quais cartas seu oponente tem ou quais cartas serão colocadas na mesa, aumentar seu dano em uma mão, etc. O poker em si é jogado em grande parte de forma tradicional, mas suas fichas somam sua vida e as fichas depositadas na mesa servem como forma de ataque. Então essencialmente cada aposta feita pelos jogadores soma numa pilha que vai virar dano na vida de alguém, porém o jogador vencedor da rodada não recebe todas as fichas da mesa – somente um reembolso das que apostou. Isso significa que a cada rodada o resultado vai ser alguém perdendo HP, e a outra pessoa se mantendo no mesmo lugar.
Somado a esse sistema de perda constante de fichas, existe um multiplicador que aumenta a cada aposta e vai ser multiplicado pelo montante na mesa para virar dano ao final da rodada. Esse multiplicador, porém, também vai ser aplicado caso você desista de uma mão. Então em um exemplo prático, digamos que a mesa tem 800 fichas, a aposta mínima seja 100 fichas e o multiplicador já está em 15. Se seu oponente aposta 500 e você não está confiante em sua mão, na vida real a atitude mais sensata costuma ser a desistência, onde você vai perder só as fichas que jogou (metade da mesa, ou seja, 400). Com o multiplicador afetando descartes, você é obrigado a abrir mão dos 400 que jogou e mais o valor do multiplicador vezes a aposta mínima – o que significa que nesse caso você abriria mão de 1900 fichas. Tornar a desistência frequentemente impraticável é uma ótima forma de te obrigar a usar as habilidades, mas também é onde a estrutura do jogo começa a ruir.
Por mais que o jogo aplique todas essas camadas extras ao poker, ele ainda continua sendo essencialmente poker. Além de não termos o aspecto social de blefar e observar seus jogadores em busca de sinais de blefe, também perde-se um pouco do elemento caótico de ter múltiplas pessoas movimentando a mesa, afinal os duelos são individuais. Assim, sobra uma versão totalmente esterelizada de poker, onde só existe um caminho real para se ganhar. Na esmagadora maioria das partidas, você só vai ficar pagando o valor mínimo da mesa (que não aumenta o multiplicador) junto de seu oponente até chegar no fim da rodada e alguém tomar pouco dano. Isso se repete até você tirar uma mão boa, aí com uso de duas habilidades e all in você força seu oponente a aceitar sua aposta e ganha tirando milhões de vida de uma vez. Enquanto você não tem uma mão boa, não existe incentivo pra blefar ou apostar alto e arriscar que seu oponente tenha uma mão melhor e faça com você o que eu acabei de descrever, geralmente te eliminando também em uma ou duas jogadas.
Ao meu ver, existem duas coisas que podiam movimentar mais as partidas: a IA do oponente e as cartas. Se a IA dos oponentes fosse mais consciente das mecânicas do jogo e jogasse de forma mais inteligente, você seria forçado a pensar mais e usar melhor seu arsenal de habilidades. Ao mesmo tempo, se as as cartas fossem menos aleatórias e tivessem algum sistema pra te entregar uma mão boa em um número mínimo de turnos, seria menos tedioso ficar apenas fazendo o mínimo enquanto espera sair algo bom. Do jeito que as coisas são, porém, seu oponente tem uma IA incrivelmente básica e burra (que ficou ainda mais passiva após um patch), ao mesmo tempo que as cartas parecem ser mesmo completamente aleatórias – o que torna cada partida de poker lenta e entediante. Em um jogo que poker é sua mecânica central, me parece que os desenvolvedores não passaram tempo suficiente jogando o próprio jogo pra perceber que era chatão.
A parte artística do jogo é, curiosamente, onde ele tem seus maiores trunfos e fracassos. Os designs das personagens principais são bonitos, o jogo tem uma abertura animada excelente e a trilha sonora, apesar de pequena, tem músicas muito boas. Porém uma vez que você começa a jogar, o outro lado da moeda fica dolorosamente aparente. Ao mesmo tempo que as personagens principais são bem feitas, os NPCs menores são muito amadores e claramente seguem estilos artísticos diferentes. Ainda assim eles não ofendem tanto quanto os fundos, que são gerados por IA.
Isso é algo que eu já tinha ciência antes de começar o jogo, visto que eles tinham um aviso na página da Steam que os fundos tinham sido parcialmente gerados por IA mas tinham passado por mãos humanas para se adequar ao resto. O problema é que, como dá pra ver na imagem, os fundos são imagens inteiramente geradas em IA com apenas um filtro medíocre jogado por cima. Como se não bastasse, se você prestar atenção em qualquer detalhe nos cenários, as inconsistências são muito óbvias – o que indica que ainda foi usado algum modelo muito ultrapassado que ainda não era capaz de gerar imagens minimamente coesas. Isso tudo contrasta muito com o resto que mencionei na parte artística, afinal se eles tinham dinheiro pra fazer uma abertura animada, por exemplo, por que não cortar isso pra contratar alguém pra fazer os cenários? Fossem eles feitos por um artista novato ou até mesmo fotos reais com filtro bizarro por cima (alô Higurashi), ainda seriam infinitamente melhores que algo de IA – afinal mostraria que eles se importam com o produto. Eu tendo a seguir a filosofia de “se você não teve o trabalho de produzir algo, eu não vou ter o trabalho de consumir”, e essa é mais uma ocasião que eu teria economizado frustrações se a tivesse seguido.
Com um gameplay sofrível e decisões artísticas extremamente questionáveis, eu honestamente não achei que valia a pena terminar All in Abyss: Judge the Fake – por isso não o fiz. É por isso, inclusive, que essa análise não é pontuada, afinal seria injusto com o jogo. Eu joguei até o começo do terceiro capítulo (por volta de 6 horas) e, mesmo ignorando as questões éticas da IA, não tinha mais nada lá capaz de manter meu interesse. Se a história não fosse tão rasa e medíocre, e se o poker fosse tão bem executado quanto soa na teoria, talvez tivéssemos uma mistura muito interessante em mãos – mas a realidade das cartas nem sempre é satisfatória. Eu admiro que o jogo ainda esteja sendo atualizado e balanceado baseado em feedback dos jogadores, mas infelizmente não existe carta na manga que esse jogo possa puxar para torná-lo algo além de descartável.
All in Abyss: Judge the Fake
Alliance Arts
ACQUIRE Corp, WSS playground
PC, Playstation 4, Playstation 5, Nintendo Switch