Aproximadamente 3 meses depois de seu lançamento, será que Doom Eternal é Eternal mesmo?
Pra quem já jogou, dá pra perceber que a ID Software (a criadora e desenvolvedora do Doom) se preocupa, principalmente, em pegar a fórmula do Doom 2016 e “aumentar o volume” em todos os sentidos: desde a trilha sonora irretocável e brutal até a tensão das inúmeras batalhas e tiroteios contra as hordas de demônios.
E isso funciona muito bem – o jogo é evidentemente um dos melhores lançamentos do ano, premiadíssimo por boa parte da imprensa especializada. Para todos os propósitos, Doom Eternal foi considerado um sucesso inquestionável.
Porém, é hora da opinião impopular: irei colocar para debate e analisar alguns pontos que me chamam atenção por serem bons, ruins e/ou simplesmente mal executados. Essa crítica será feita sob 3 eixos que considero principais e fundamentais em qualquer jogo: Design, Jogabilidade e Direção/Roteiro. Comecemos pelo Design e Ambientação:
Conceitualmente bem elaborado, a ideia dessa vez é redobrar a aposta num design mais caricato, cartunesco e fica mais claro na forma em que o jogo vai se apresentando. Doom Eternal, em si, não se leva tão a sério como seu antecessor e esse aspecto aparece nitidamente em algumas ocasiões. Um dos elementos que reforçam esse caráter é o desenho de alguns itens pickups que aparecem nos mapas – além de serem claras referências ao Doom original, são pensados também para serem distinguidos com facilidade do resto do cenário e avistados nitidamente. Funciona bem.
Dá pra perceber também que uma das principais inspirações para a direção de arte do jogo são capas de álbum de heavy metal da década de 80 e 90. Até é possível notar a influência nos itens que desbloqueiam algumas faixas da trilha sonora, coletáveis pelos mapas – imitam discos de vinil, cada faixa com uma arte própria. A aposta na nostalgia é bem óbvia.
Dito isso, o design e o conceitual dão uma certa escorregada: existe excesso de informação no desenho e detalhes de cenários e armas.
Parece que os designers, para preencherem toda e qualquer lacuna, se esforçam para não deixar espaços em branco em hipótese alguma – muitas vezes uma mera parede é obsessivamente sobrecarregada de detalhes desnecessários. Em Doom Eternal sempre “mais é mais” e nunca “menos é mais”. Quase todos os elementos visuais possuem um tipo de camada extra de detalhes, um revestimento de pequenos (e muitas vezes imperceptíveis) dobramentos, parafusos, sulcos e parafernália tecnológica que existe para ocupar espaço. A armadura do protagonista é um exemplo muito nítido:
É possível notar um aceno para o design da armadura original dos dois primeiros jogos da série – o braço exposto e um tom menos robótico. Contudo, ainda fica claro o excesso de informação visual. Não existe algo plenamente “liso” ou plano – todos os elementos são abarrotados de pequenos e ínfimos detalhamentos.
O design das armas segue o mesmo padrão e apresentam o mesmo problema – excessivamente detalhadas e causam certo desconforto. Inúmeras peças e detalhes apenas marcam presença visual, servindo apenas para cobrir espaço e não desempenham um papel para o funcionamento das armas.
Lembrando que isso também acontece no Doom 2016, todas instalações e construções das bases de marte possuem muita complexidade de elementos, às vezes até com pequenas áreas de propósito meramente decorativo.
Outro fator digno de ser comentado é que a Interface é um passo pra trás em comparação com Doom 2016. A fonte escolhida para os títulos é destoante em relação ao resto da interface e às vezes parece leitura. Existem alguns pop-ups desnecessários que pausam a ação do jogo e te ensinam a lidar com alguns inimigos – o que poderia ser simplesmente deixado a cargo do jogador descobrir sozinho.
Aperfeiçoando a fórmula de 2016, a gameplay de Eternal foi pensada para ser um pouco mais estratégica, balanceada e fluida. Em teoria parece ótimo, adicionar um tempero na jogabilidade já bem realizada do jogo anterior soa incrível. Porém, não considero tão bem executada e é um dos pontos em que o jogo tropeça em si mesmo.
É introduzida uma mecânica de coleta e obtenção de recursos que é nomeada de “Unholy Trinity”: pontos de vida, munição e pontos de armadura – mate inimigos com a motosserra para que eles dropem uma chuva de munição. Elimine-os com os “fatalities” (Glory kill, segundo o jogo) para que deixem cair itens de cura e, se estiver precisando recuperar pontos de armadura, queime-os com o lança-chamas montado no ombro.
Entretanto, para que essa mecânica faça sentido dentro da lógica do gameplay é necessário que os recursos sejam escassos ou, pelo menos, desejados pelo jogador. E como fazer isso? Limitando o máximo de munição, escudos e vida.
Na minha experiência, surgiu um problema elementar durante um dos primeiros níveis do jogo: sem upgrades e com poucas opções de armas, a munição acabou e não havia monstros para serrar – o que me deixou preso numa área com um inimigo mais poderoso e o melhor que eu podia fazer era esquivar dos ataques, até porque o ataque corpo a corpo padrão não causa dano algum.
Apesar de trazer momentos de altíssima adrenalina, sufoco e sensação de estar sempre dançando de frente ao abismo, a ‘unholy trinity’ força o jogador a seguir um certo padrão de comportamento nos combates e acaba por deixá-los repetitivos: em quase todos combates os inimigos aparecem numa determinada ordem. Sempre haverá inimigos mais fracos para serem usados de recarga de recursos e poucos outros, mais fortes e desafiadores, para deixar o combate mais denso.
Assim, enquanto você atira e se esquiva dos monstros mais perigosos, também se ocupa em manter alguns inimigos mais fracos vivos para se recuperar. Veja bem – o conceito em si não é propriamente ruim, é apenas executado de forma que força o jogador a dançar conforme a produtora quer, não respeitando o ritmo e o estilo do jogador.
Quando não estamos no samba da unholy trinity, estamos cruzando os cenários em busca de chaves e a resolução de alguns puzzles de plataforma. Nesse sentido, o jogo também sofre certa “cartunização” e um maior grau de descomprometimento com um suposto realismo que o design visual inspira – certas partes dos mapas parecem ter saído diretamente de um jogo de plataforma 2D (com direito a correntes de fogo giratórias) que exigem certo grau de reflexo e timing. Dentre todas as inovações no jogo, os segmentos de plataforma e pulos são os que menos se encaixam no conceito. Não adicionam nada ao núcleo da gameplay, não dialogam com outros elementos na construção dos níveis (não são nem propriamente difíceis) e existem apenas para alongar o tempo de jogo.
É até curioso como esse já é um aspecto que o diferencia muito dos jogos originais – em sua estreia em 94, Doom não tinha nem comando para pular. Hoje conta com pulos duplos, “sprints” aéreos e barras de macaco em que o personagem se apoia para saltar ainda mais longe (e o combate aéreo é altamente incentivado).
Outro elemento que alude aos videogames antigos é a existência de “1 ups”. Pra quem é das antigas, sabe que se trata de uma ‘vida extra’. Na prática ele simplesmente te impede de morrer quando seu contador de pontos de vida atinge zero e cura uma porcentagem dos pontos de vida. É interessante também que os itens no cenário também tem um design que remete a jogos antigos – coloridos, grandes e bem nítidos.
Doom Eternal não se leva a sério. E digo isso em tom de elogio. Como também pontuado na análise de design, Eternal não se preocupa em apresentar um roteiro denso com plot twists para explodir sua mente e nem ambiciona isso. Aqui a proposta é coerente com a gameplay – o personagem existe num mundo criado para que destrua e despedace todos os demônios. É simples e funciona. O jogo sabe que é um jogo e os produtores não tinham a pretensão de fazer uma experiência cinematográfica imersiva.
Por outro lado os desenvolvedores mostraram que querem sim, criar uma lore e aprofundar a “mitologia Doom”. Em certos momentos do jogo, mostram um pouco do passado do personagem principal – o Doom Slayer. Exceto por algumas cenas ingame, o grosso e essencial da Lore que os produtores criaram está disponível nos menus no formato de textos, para quem quer conhecer mais a fundo sem interromper a ação.
Dessa forma, Doom Eternal que, a princípio, parece começar onde seu antecessor parou, nos atira num conflito já estabelecido, onde os demônios estão invadindo e destruindo o planeta e é justamente assim que o jogo nos dá boas vindas, como quem diz: “Esta é a sua arma, este é o personagem e tudo que se move deve ser perfurado, serrado, explodido e despedaçado. Divirta-se e boa sorte”.
O protagonista ganhou até um status de herói e é visto pelos outros humanos como um semideus, algo que o Doom 2 até acenou de forma bem discreta – depois de terminar o jogo, é exibida uma tela com os inimigos e seus nomes. O último é o protagonista e seu nome é “our hero” (nosso herói, em inglês).
Doom Eternal é um ótimo jogo – extremamente divertido, satisfatório e fez por merecer toda a fama. Faz justiça ao que construiu ao longo dos tempos e, sobretudo, ao reboot Doom 2016. O combate é sufocantemente satisfatório e o jogador sai sempre com uma ótima sensação de vitória (e banho de sangue).
Ainda sem DLC’s anunciadas, o valor de replay do jogo é bem limitado. Torna-se até enfadonho depois que o jogador desbloqueia todas as armas e upgrades do personagem – algumas partes em que o foco é a dificuldade do combate se transformam em um self-service de purê de carne de demônio. Dessa forma, o SnapMap, editor de mapas do Doom 2016, fez muita falta no seu sucessor.
O jogo realmente aposta no ‘exagero’ e nas proporções: quase todos os elementos do jogo são grandiosos e inflados. Os pontuais deslizes no design da gameplay e gráficos não anulam a diversão que o jogo proporciona. É possível passar horas explorando os mapas e se aperfeiçoando no combate. E o que brilha de verdade em Doom Eternal é este combate fluido, brutal e frenético. Basicamente um parque de diversão regado a banhos de sangue, tiros e demônios.
O enfoque na nostalgia é grande, talvez mais do que deveria, um dos nortes do desenvolvimento é obviamente o aceno aos jogadores mais velhos e, ao contrário do seu antecessor que “copiou e colou” alguns níveis do Doom 1 e 2, Eternal pisa fundo e coloca ambos jogos inteiros para serem acessados dentro de si mesmo (basta acessar o computador do personagem no “Fortress of Doom”, colocar a senha para o Doom 2 e coletar todos os disquetes de cheat codes para o Doom 1). Por hora, temos um jogo divertido que pode te fazer investir em torno de 35h para completar o modo campanha e se sujar com tripas e pedaços de demônios até dizer chega.