Lucro, sexo e criatividade: 15 anos depois, Second Life é um moribundo universo mantido vivo pela comunidade

Por Silvio Diaz

Era 2003. Naquele ano, no início de se tornarem comuns, os telefones ainda estavam muito longe da revolução do Iphone. O N-Gage ainda era uma grande aposta. No cinema, o final da trilogia de Senhor dos Anéis ganhou o publico ao contrário da última parte de Matrix. Contudo, mesmo que o final da saga de Neo tenha deixado a desejar para muitos, a ideia de um mundo virtual era constante e desejada por grande parte dos usuários que estavam finalmente descobrindo o poder da internet. 

Essa vontade de viver em mundo virtual aos poucos ganhou forma com os lançamentos de MMOs como Grand ChaseMappleStory e Eve Online. Entretanto, quem conquistou os noticiários foi Second Life.

Diferente da maioria dos MMOs, que tentava trazer uma experiência fantasiosa focada na pura diversão, Second Life, como o próprio nome diz, foi para os videogames o que Matrix foi para o cinema.

Ali, era possível conhecer pessoas do mundo inteiro, ganhar dinheiro de verdade, fazer reuniões de negócio, dançar em baladas digitais e até mesmo transar – claro, tudo virtual. Até famosos participaram daquele mundo, um palco que rendeu, por exemplo, a Cláudia Leite e seu clipe Doce Paixão “gravado” em uma virtual Ipanema. Em 2009, a dupla de Daft Punk fez um show integralmente virtual em Second Life. Houve até mesmo festas para celebridades, controlando seus avatares que ostentavam dos mais queridos e caros acessórios vendidos no game.

A história da milionária do Second Life fez tanto sucesso que ganhou capa de revistas de negócios como a BusinessWeek. Holofote que chamou a atenção de mais e mais pessoas interessadas nessa nova mina de ouro. Ou seja, o mundo dos negócios entrou ainda mais nesse universo online, incluindo desde empresas como Nokia e IBM, a diversas imobiliárias que vendiam casas no mundo real e virtual.

De fato, Second Life tinha números. Segundo infográfico da Linden Lab – desenvolvedora do game – em 10 anos, o jogo movimentou 3,2 bilhões de dólares com mais de 36 milhões de contas criadas e mais de 1,2 milhões de transações diárias.

Mas, todo esse potencial não durou tanto tempo. “O que aconteceu é que foi vendida uma ideia falsa, na qual o Second Life seria uma espécie de navegador realista. Um explorer 3D. Mas isso claramente não funcionou. Empresas grandes e pequenas que tentaram se promover, falharam, já que a visibilidade para isso nunca existiu”, acredita Marcus Vinicius Cavalcanti, que junto de sua esposa, vive desde 2004 integralmente criando acessórios em 3D para venda dentro do jogo.  

Cavalcanti acredita que as marcas não entenderam que uma simples cópia de suas empresas em um mundo virtual nunca seria tão interessante quanto as infinitas possibilidades do universo fantasioso de Second Life. “Por que você iria querer ter um Gol (carro) se pode ter um dragão voador, uma moto do Kaneda, o personagem do anime Akira, ou até mesmo um carro real esportivo? O marketing não atingiu o consumidor”, questiona.

Entretanto, não era apenas a concorrência criativa que deixava claro o motivo de o game não funcionar para investidores. A ideia de divulgar sua empresa era uma tarefa muito mais complexa e difícil do eles poderiam talvez compreender.

“Que gerente de marketing, então, conseguiria justificar aos seus diretores que estava colocando alguns milhares de dólares no Second Life para atingir 50 pessoas? Ou 100? E pior, cujas características sociodemográficas são totalmente desconhecidas. A dona daquele avatar feminino ali tem quantos anos? Onde mora? E… hmm… será mesmo uma dona?”, ressaltou o publicitário Marcio Ehrlich em seu texto escrito para o site Extra do portal Globo.  Em 2007, ele criou  o Moo’nlight Chapel, uma capela que permite aos jogadores se casarem independente do sexo, mediante o pagamento de 11 dólares.

Esses problemas deixaram o fenômeno mundial de Second Life para o passado e o game, que era visto como um grande investimento, foi esquecido. Hoje em dia, encontrar pessoas no mundo real que ainda o jogam é incomum. “Ninguém quer se expor mais. Alguns posts colocaram jogadores como párias sem noção da realidade. É como qualquer jogo, tem de tudo, mas, quanto menos expusermos a nossa RL [Vida Real], melhor. Muitos tratam o SL [Second Life] como sua ilha de paz”. Quem diz isso é a dona de um dos maiores grupos de Facebook focados no game e proprietária de três páginas com o objetivo de melhorar e ajudar na experiência dos jogadores – uma delas fala sobre ilhas, outra de bebês no game e a terceira só de objetos gratuitos. Ela pediu que não fosse revelada a sua identidade.  

Second Life passou a ser chamado de terra de zumbis com o tempo. Hoje, mesmo com 49 milhões de avatares criados, suas ilhas, que comportam de 50 a 100 usuários ativos, estão praticamente vazias. Algo que muda levemente em determinados horários. Em certas ilhas, mesmo após sucessivas atualizações feitas pela Linden Lab, ainda é difícil descobrir quais são os locais mais povoados.

Segundo jogadores atualmente ativos no game, a variedade de ilhas, quase que 100% criadas por usuários, é o motivo do charme e que ajuda o game a se manter vivo com usuários gastando dinheiro. Entre essas ilhas, temos por exemplo as de RPG, que simulam jogos medievais, apocalipse zumbi e até favelas do Rio de Janeiro, deixando os jogadores criarem suas próprias histórias, lutando ou apenas atuando. Boa parte dos frequentadores destes RPG’s se vestem a caráter usando roupas vendidas por empresas e vendedores.

Mesmo não existindo números oficiais de vendas divulgados pela empresa, o game que, embora não tenha mais o sucesso e o mercado de outrora,  ainda é extremamente lucrativo. Existem muitas lojas e pessoas que, como Cavalcanti, vivem de vendas dentro do jogo. “Também trabalhamos com design gráfico. Layout de site, logotipo, cartão de visita, mas é um mercado muito saturado, paga mal e é muito inconstante. Com o Second Life, temos alguns clientes fixos, então acaba sendo o “garantido” do mês. Também não é certinho. Tem meses melhores e piores, mas acaba sendo mais certo que outras coisas que fazemos”, aponta Cavalcanti. No caso dele, as vendas são de roupas femininas e masculinas, “mas, às vezes, surgem outros trabalhos como construção de lojas, acessórios, sapatos e outros.

Um outro mercado que se mantém em pé até hoje – dando muito lucro tanto para os comerciantes quanto para sua desenvolvedora – é a área imobiliária. Mesmo não sendo o sucesso que as grandes marcas esperavam, o nicho que fez Ailin Graef milionária rende. É possível comprar praticamente qualquer casa ou recinto em preços bem variados.

Por menos de um dólar, o jogador consegue uma casa simples no marketplace, ao mesmo tempo que ainda são vendidas residências mais complexas que custam de mil dólares para cima. Tudo é possível: por US$ 33 , se compra Hogwarts, o colégio de bruxaria dos livros de Harry Potter; e, com US$ 629, uma estação lunar inteira. Contudo, o que realmente traz o lucro para a desenvolvedora do jogo são as taxas de uso de terreno.

Comprando uma casa, é necessário alugar o terreno para “colocar” a residencia diretamente com a Linden ou com terceiros – que já alugam com a casa pronta – o que faz alguns jogadores pagarem dezenas de dólares por semana. Na Anshex, por exemplo, existem terrenos inteiros sendo alugados por L$17.999,00 (Linden Money) por semana, equivalente a US$ 66. Ao mesmo tempo, na mesma loja, é possível alugar casas em lotes por menos de um dólar, tudo isso em vendas no próprio jogo, como se na vida real a pessoa fosse visitar e comprar com um corretor de imóveis.

“Para usar, habitar, decorar, brincar”, respondeu a dona do grupo de Second Life quando perguntada do motivo de comprar essas casas. “A maioria das mulheres adora brincar de casinha [risos]. O SL é meu parquinho e de muita gente também. Construo ilhas e decoro casas e jardins”, confessa. O jogo se tornou o “The Sims Online” para as pessoas que se mantiveram nele. Uma possibilidade de viver vidas diferentes, sem julgamento, nem preconceito. “Minha realidade é bem diferente da realidade da maioria das pessoas com quem convivo no SL. Eu ‘vejo’ as vidas, aprendo sobre eles e, com isso, os respeito ainda mais. Pra falar a verdade, me deu mais amor ao próximo: eu ‘vejo’ elas”, acredita.

Esse respeito e ensinamento que o MMO traz de amizade e, até mesmo, de amor ao próximo parece unânime. Ao menos, com quem a reportagem conversou. Seus usuários buscam a segunda vida não por considerarem as suas ruins, mas como uma forma de relaxar e se divertir. Até mesmo atos pró ou contra políticos são mal vistos pelos jogadores:  “o SL é praticamente uma zona neutra no mundo. Aqui, se relacionam todos de maneira mais pacífica do que na RL. Convencionou-se respeitar as diferenças e nacionalidades. Dias atrás, um grupo se reuniu em protesto a algo que o Trump fez (ou deixou de fazer) e foi muito criticado. Queremos deixar as guerras políticas, étnicas ou por fronteiras da RL fora do SL”, pontua a dona do grupo.

Esse mundo neutro não é difícil de ser reconhecido após a entrada no jogo. A reportagem pisou as águas rasas desse universo e, aos poucos, se afundou. Pesquisando preços e produtos no marketplace, encontrou-se uma skin gratuita do Finn, de Hora de Aventura. Este, foi o personagem escolhido para explorar e conhecer as pessoas daquele mundo e não demorou muito para que brasileiros passassem a interagir de forma amigável. Com brincadeiras sem ofensa alguma, as pessoas do jogo interagiam sem a comum toxicidade da internet e de uma certa forma, mesmo sem entender muito daquele lugar, isso trazia um sentimento fazer parte do grupo.

Existem ilhas feitas para ensinar jogadores novatos, com itens grátis e cartazes explicando cada detalhe, desde como se teletransportar, até vestir roupas e entender as animações. A busca era por um mundo onde tudo era uma forma de ganhar dinheiro, mas, com a queda de popularidade, seus fãs passaram a trabalhar juntos para manter a comunidade viva. Desde os mundos de RPG, até as baladas que o game sempre teve, tudo é mantido vivos pela comunidade, que continua construindo novos locais e marcando encontros nos já existentes. Em uma dessas comunidades foi que Alisson Cassio, jogador há 8 anos, teve sua vida mudada drasticamente. “Esse ano, completo três anos de relacionamento com minha namorada. Namoramos um ano e meio à distância pelo SL. Eu, no Rio Grande do Sul, e ela, em São Paulo. Depois, eu vim morar aqui com ela. No começo, é difícil, por que quando sai do Rio Grande do Sul morava com minha família ainda, mas, hoje em dia, conquistamos muitas coisas juntos, claro que com os dois lutando no dia a dia”, relata.

Porém, ainda que a comunidade faça muitas ferramentas e ilhas totalmente gratuitas, o comércio ainda é constante. Existem ilhas de feiras onde grandes empresas do Second Life estão vendendo seus acessórios. Segundo a dona do grupo do Facebook, algumas feiras têm fila de espera de quatro dias, já que suportam um máximo de 50 a 100 pessoas online. 

Mercado para mulheres é bem maior, mais completo e mais lucrativo que o de homens. Geralmente, os caras se bastam com aparência ao estilo ‘Jersey Shore’ [seriado norte-americano]. Já para mulher, apareceu no tapete vermelho de alguma premiação, em três dias, tem uma cópia fiel no Second Life”, conta Cavalcanti.  Os produtos, muitas vezes, precisam ser idênticos ao real, sem nenhum espaço para criatividade. “A pessoa manda uma foto e é feito exatamente aquilo que se pede. Às vezes, o cliente pede até as dobras que a blusa faz na foto. As lojas seguem muito seu estilo próprio, cada uma no seu nicho. Então, quando fazemos trabalhos para essas pessoas, elas sabem com certeza o que querem”, completa.

É possível encontrar praticamente qualquer peça à venda, não se limitando a casas e roupas, mas em cabelos, rostos, danças, automóveis e animações. A variedade é tão grande que parece realmente possível ser único, indo do mais humano e socialmente considerado bonito possível, até um personagem de desenho, como Finn e Jake, de Hora de Aventura. É possível até mesmo usar avatares de bebês, para uma brincadeira de família, com pessoas fingindo juntas ser pai, mãe e criança. Algo que se tornou ainda mais real após uma atualização que permite pessoas engravidarem.

Aliás, o sexo no game não é mais lucrativo como já foi. Não existem mais pessoas se prostituindo e lucrando com isso, Mas ainda é possível dançar sensualmente em boates e tentar descolar uma grana mesmo que o número de jogadores que entram nesses locais seja pequeno atualmente. Ainda sim, não é como sexo não existisse ali e, diferente de jogos como Habbo, que diariamente postam imagens no Twitter e Facebook do sexo estritamente verbal. No Second Life, é possível comprar camas com um leque enorme de animações sexuais. Animações essas que separam masturbação feminina da masculina, com diversas posições para a relação em casal e etc.

Não é difícil descobrir centenas de formas de se entreter no jogo. Há alguns, anos usuários criaram uma ilha que replicava Berlim na década de 20 e alguns usuários até hoje se encontram lá vestidos como pessoas da época para conversar e se conhecer. Além de mapas temáticos, é possível até mesmo comprar e pilotar aviões com uma jogabilidade muito próxima de simulação, elemento que faz sucesso ainda hoje. 

Mesmo conquistando novos jogadores, o Second Life não é mais tão convidativo a novos comerciantes. “A dificuldade é bem maior que no passado. Já existem muitas lojas extremamente bem consolidadas que são referência em seus respectivos segmentos. Então, os clientes exigem bastante qualidade no que é feito. Além de não ser mais possível criar algo sem um certo dinheiro investido, é preciso ter muita paciência para divulgar seu negócio em redes sociais como Facebook e até mesmo no boca a boca, entre outros avatares”, explica Calvalcanti. Algo que deixa ainda mais claro que mesmo com novos jogadores, ele ainda é estruturado para e pelos antigos.

Da mesma forma que o desenho Jetsons da Hanna Barbera foi uma representação de como acreditavam que seria o século 21, Second Life demonstra até hoje as vontades e pensamentos para o futuro do início desse século. Algo que, com a velocidade da internet, se desfez em pouco tempo. Ainda sim, é inegável a importância que o game tem como história da internet e da humanidade. Foi lá que tivemos a primeira milionária virtual e a primeira vez que um verdadeiro universo individual se abriu. O fato de ele existir até hoje é mais uma representação histórica que está nas entrelinhas de nosso enredo. Uma prova de que na internet, se a comunidade tiver amor por algo, ele vive ainda dando lucro e se transformando.

Este texto foi escrito originalmente por Silvio Diaz (editor do Game Lodge) para o site Player 2 e foi publicado com autorização do editor e dono do site.