A primeira gamescom latam aconteceu recentemente e, se mantendo fiel às suas origens como BIG, houve uma presença forte de jogos independentes na feira. Com mais um ano transicional para esse evento que está em sua terceira identidade em três anos, a presença dos indies acabou tendo como consequência uma falta de foco no que era apresentado, e por isso muitos jogos ficaram espalhados em áreas diferentes. A indie area, o panorama brasil, a Abragames e o Sebrae são todos lugares que estavam expondo jogos em pontos diferentes da feira, por exemplo. Devido a essa bagunça logística e à limitação que existe de tempo em nossas vidas, eu precisei focar em algum deles, e o escolhido foi a indie area.
Esta zona do evento tinha doze espaços que foram ocupados por diferentes expositores, sendo que o último pertencia à editora Europa, por alguma razão. Outro ponto curioso sobre essa área é que, dos onze expositores, dois eram do Equador e um do México – o que contribuiu um pouco mais para a sensação de um evento que realmente englobasse a América Latina como um todo. E, dentre esses expositores, estes eram os projetos jogáveis:
De um time de desenvolvimento do México, Bio-Sphere é um jogo mobile que ainda está em estágios iniciais de desenvolvimento, mas possui bastante potencial. Ele apresenta biomas contidos em esferas para o jogador utilizar, e nesses biomas ele vai receber criaturas que precisam de cuidado temporário – seja ele veterinário ou apenas um pouco de alimento. Durante a estadia de sua criatura, você pode interagir e brincar com ela para desbloquear itens cosméticos para cada animalzinho, e quando ela estiver satisfeita, ela retorna a seu habitat natural. Tudo no jogo reflete essa ideia de conservação e convivência consciente com as criaturas ao nosso redor, e os dois animais presentes na versão da feira eram baseados em animais reais em risco: a jaguatirica e o axolote.
A ideia da mensagem ecológica do jogo é bem legal e eu acho que o gameplay, apesar de bem inicial ainda, tem potencial para envolver bastante quem gosta desse tipo de jogo mobile. A arte dele é linda e adiciona um twist mais fantástico aos animais, o que também ajuda o jogo a se destacar. A grande preocupação com esse tipo de jogo, que também se faz presente aqui, é como a monetização vai se refletir no gameplay e qual vai ser o balanço de coisas desbloqueáveis no jogo versus apenas com dinheiro.
Mesmo sendo fã de jogos em geral, os de tabuleiro nunca fizeram parte do meu dia a dia porque, além de trabalhosos de jogar, são particularmente caros. Boardible é justamente uma tentativa de solucionar esse problema através de um serviço online de assinatura de jogos de tabuleiro. O aplicativo funciona como uma Netflix de versões digitais de alguns jogos de tabuleiro famosos, em que apenas uma pessoa precisa estar assinando para poder dar acesso às demais para jogarem em conjunto. Todos os jogadores podem jogar individualmente em seus celulares em um mesmo ambiente, enquanto o host pode enviar a imagem do tabuleiro para a TV – sem mostrar elementos sensíveis, como cartas de sua mão – para que outras pessoas no mesmo ambiente possam acompanhar o jogo, por exemplo.
Como alguém que não joga muito esses jogos, admito que esse serviço soa como um tremendo passo na direção de tornar o acesso a eles mais universal. Considerando também que as versões digitais dos jogos físicos são produzidas pelo próprio time do aplicativo, e que eles possuem alguns jogos permanentemente gratuitos e outros em rotação semanal, o pacote todo parece extremamente sólido. Certamente um dos projetos que mais fiquei interessado em testar após o fim do evento.
Eu já havia jogado Bloodless no BIG do ano passado e tinha ficado impressionado com o jogo. Um combate frenético e tenso baseado exclusivamente em counters e uma identidade visual extremamente única ajudaram a destacá-lo na minha memória, e revê-lo após esse tempo em desenvolvimento foi bem interessante. O jogo tem uma temática de Japão antigo, e a personagem que você controla usa apenas combate não-letal através de counter aos ataques inimigos. A parte mais notável são os visuais, que criam uma atmosfera intensa utilizando poucas cores e muito contraste entre os personagens e as fases com uma pixel art minimalista. Esse aspecto foi também o que mais evoluiu desde o ano passado, agora apresentando cenários ainda mais detalhados e bonitos. É particularmente legal poder ver um jogo evoluir visivelmente assim no período de um evento a outro, e conversar sobre as experiências dos desenvolvedores nesse tempo.
Cat Idle é a fusão de dois gêneros simples, porém extremamente viciantes: jogos runner e jogos idle. Nele você tem um gatinho que corre por um cenário coletando moedas e derrotando inimigos, e enquanto isso você compra upgrades que vão automatizar e deixar mais eficiente a coleta dessas moedas – consequentemente te dando acesso a mais upgrades, e por aí vai. O jogo ainda está em estágios iniciais e estava ali mais como um protótipo da ideia do estúdio. Mesmo assim, já havia um bom grau de polimento na arte, com direito a diferentes skins para o gato que, eventualmente, serão desbloqueáveis. O maior desafio aqui é que a combinação desses estilos de jogo pode muito bem gerar um resultado bem divertido, mas vai precisar de um balanceamento particularmente delicado para que um dos estilos não se sobreponha ao outro na hora de jogar. Ainda assim, pelo que estava jogável e que eu conversei com um dos desenvolvedores, eles parecem estar no caminho certo para viabilizar esse conceito tão interessante.
Eu gosto muito de jogos que refletem a cultura de algum povo ou nação, pois é através deles que muitas vezes se aprende detalhes muito interessantes que não temos contexto para “precisar” aprender fora desses jogos. Chakana, Gold of the Gods é um desses exemplos, e ele se propõe a usar vários aspectos da cultura originária dos Andes para ilustrar um metroidvania com fortes inspirações em Hollow Knight.
Por mais que o jogo esteja mecanicamente em um estágio mais inicial e tenha muito polimento ainda pela frente, eu fiquei impressionado com a visão artística dos desenvolvedores – que são do Equador – e a capacidade de integrarem diversos elementos culturais da região de forma orgânica para criar aquele mundo. É o tipo de jogo que, com o devido polimento necessário para o sucesso nesse gênero hoje em dia, traria uma visão fresca o suficiente para se destacar em meio aos outros. Ao mesmo tempo, o jogo utiliza inteligência artificial para algumas artes de sprites de inimigos, o que já seria suficiente para me decepcionar com relação à visão artística dos desenvolvedores – não fosse o fato que isso nunca foi explicado no evento, e só tive conhecimento através da página no Steam. Dado o estágio inicial em que estão e o feedback negativo que a presença de IA tem trazido a projetos assim, espero que eles possam reconsiderar o uso dessa ferramenta no produto final.
Imagine a tensão inerente de jogar algo como Frostpunk – em que você toma decisões difíceis constantemente em prol do bem-estar de um povo em um pós-apocalipse – porém agindo através de um card game. Essa é a proposta de IRONHIVE, e ela entrega uma experiência tão única quanto viciante. Não bastasse seu gameplay tão único, o jogo tem uma direção de arte extremamente chamativa, muito inspirada no estilo de ilustrações de graphic novels.
A demo presente no evento – que é a mesma presente no Steam – já tem bastante tempo de jogo disponível, o que dá uma boa ideia do projeto em geral. A versão final ainda deve contar com a possibilidade de compartilhar suas civilizações em determinados pontos para que seus amigos possam assumir controle de onde você parou e terem que lidar com as coisas do jeito deles a partir dali. Isso, somado ao jeito inerente que esse estilo de jogo costuma te puxar de volta para fazer mais runs e ver quais caminhos você pode tomar, devem garantir uma longevidade interessante ao título.
Ah, a ironia que é ter um jogo que pega um conceito tão divertido como desenhar e o substitui por inteligência artificial ter como nome uma variação de lazy – preguiçoso, do inglês. Que fique claro, eu não sou contra o uso de inteligência artificial em si, porém ela só deve ser empregada em dois tipos de casos: otimização de trabalhos manuais monótonos e geração advinda de um banco de dados fornecido eticamente pelo usuário. A inteligência artificial que se popularizou na internet nos últimos tempos é generativa de praticamente todo o conteúdo na internet – o que a torna muito eficiente em certos tipos de imagem, mas essencialmente tudo que ela gera é cópia de algo que já existe, amalgamado de forma que fique irreconhecível para nós. Além de ser uma máquina de plágio da qual todos somos vítimas, a geração de imagens atualmente usa energia elétrica suficiente para sustentar um pequeno país. Com isso tudo em mente, usar essa ferramenta para um jogo rápido entre amigos certamente não me soa como uma boa ideia.
E o pior é que o jogo em si nem é um conceito interessante, já que ele é uma versão de Gartic que retira o desenho dos jogadores – a parte mais divertida de Gartic. A premissa é gerar imagens de IA usando prompts engraçados e ir passando para outros jogadores que vão tentar adivinhar os prompts usados. Eu já não enxergo como esse conceito poderia ser divertido, mas aí entram as limitações da plataforma. Como geração de imagens de IA é cara tanto para o planeta quanto para quem paga o uso de servidor, o jogo não tem como ser gratuito e usa de tokens que você compra e te permitem jogar partidas – como se fossem fichas em um arcade. A questão é que, mesmo pagando, cada partida só te permite gerar um grupo de imagens por prompt, o que significa que se nenhuma das imagens for o que você queria, azar o seu. Quem já usou essa ferramenta sabe que IA é propensa a errar muito com os prompts, e foi exatamente isso que aconteceu na partida de demonstração que joguei com um desenvolvedor. Sem chance de voltar atrás, fui obrigado a seguir em frente sabendo que aquilo estava errado e nem era minha culpa.
Fico frustrado que o jogo que eu tenha mais a dizer nessa lista seja justamente esse, mas ao mesmo tempo nunca vi um produto que vai tão contra as ideias do seu próprio meio só pela possibilidade de ser o primeiro a se popularizar usando uma ferramenta antiética. Remover a criatividade humana de um jogo multiplayer enquanto exige dinheiro para entregar uma experiência patética que é completamente insustentável para todos os envolvidos – principalmente os desenvolvedores – não é uma falha de planejamento, é o mercado de IA existindo exatamente como foi planejado.
Esse jogo se apresenta como uma versão de “Fall Guys com Mario Kart”. Isso significa um jogo mecanicamente muito parecido com Fall Guys, porém com a adição de itens e, consequentemente, um foco maior na parte PvP. Conceitualmente é uma ideia bem sólida, afinal a habilidade de atrapalhar outros jogadores em Fall Guys sempre me pareceu meio deslocada em meio ao caos gerado pelas próprias fases – pequena demais para ter impacto significativo, mas irritante o suficiente para frustrar por perder para alguém que está só “trollando”. O uso de itens e as opções de interferir com outros jogadores tornam Seal: WHAT the FUN um remix interessante de ideias, mas ele ainda é parecido demais com sua inspiração. Considerando que não é um jogo gratuito, a comunidade de jogadores – peça importantíssima para manter viável um projeto como esse – tem poucas razões para fazer esse investimento ao invés de jogar um título gratuito e já consolidado.
Shmups estão cada vez menos comuns hoje em dia, tendo ido de um gênero onipresente em consoles para um nicho pouco acessível para o público casual. Shmups com perspectivas diferentes então – nesse caso, em 3D com visão de trás do personagem – são ainda mais escassos. Assim, The Last Conquerors – jogo de outro time do Equador – já tem meu interesse justamente por ser algo tão incomum de se ver.
Nele você joga com uma nave em constante movimento e precisa destruir os inimigos, asteroides, e qualquer outro perigo que apareça em sua frente, enquanto coleta itens que te fornecem energia para continuar em movimento. Você também ganha acesso a algumas habilidades enquanto joga, aumentando seu arsenal contra os perigos e chefes. A demo disponível no evento era simples, porém difícil, e parecia bem promissora. De acordo com os visuais da página do jogo no Steam, parece que ele terá uma grande variedade de cenários e chefes, o que me deixa bem otimista que ele possa entregar uma experiência dinâmica. Certamente vale a pena ficar de olho, nem que seja pelo fato que não vemos mais tantos jogos assim atualmente.
Um dos sucessos espontâneos recentes que mais ecoou pela indústria de games foi Vampire Survivors. Não é para menos, afinal é um jogo com uma ideia viciante na mesma proporção que é simples, e perfeito para partidas casuais enquanto ouve ou assiste algo em paralelo. Do outro lado da moeda, clones desse novo “estilo” de jogo infestaram o Steam nos últimos tempos, tirando um pouco do brilho dessa ideia tão fresca que ele tinha originalmente.
Para minha surpresa, Vinebound: Tangled Together é uma exceção a essa onda de clones sem alma. O gameplay dele é essencialmente o mesmo de Vampire Survivors, mas com o twist de ser cooperativo e integrar isso muito bem ao jogo. Você joga com dois personagens presos por um cipó que fica “transmitindo” uma flor de jogador para jogador, e seus ataques só ocorrem quando a flor te toca. Vocês não podem ficar nem muito perto, nem muito longe, ou esse cipó vai repelir ou aproximar vocês, respectivamente. Além desse balanço delicado da distância ideal do cipó, os dois jogadores só escolhem em conjunto a arma inicial, podendo fazer builds separadas a cada upgrade liberado. Isso aumenta exponencialmente as chances de criar sinergia entre armas e upgrades, ao mesmo tempo que, mesmo que vocês se tornem máquinas de matar, ainda precisam coordenar seus movimentos para não morrer de bobeira. Pode parecer complexo explicado fora de contexto, mas uma partidinha é o que você precisa para entender com naturalidade os controles e as mecânicas – e é justamente essa camada de desafio extra que tornou esse jogo tão empolgante para mim. É bem animador ver que, mesmo em um subgênero já tão desgastado pela repetição, ainda existe espaço para ideias excelentes.
E fechando a lista, mais um jogo com a premissa “Fall Guys com Mario Kart”, mas dessa vez para o lado oposto: você corre de kart contra outros jogadores em pistas que possuem obstáculos estilo Fall Guys, e precisa cumprir um número de voltas específico para passar de fase. Os controles são bem estranhos a princípio, pois eu estava jogando em um joystick e o jogo utiliza um estilo de jogo mobile para controlar os carros – coisa que você se acostuma, mas indica que talvez o foco do jogo seja para celulares mesmo. Apesar de já ser uma demo simples com poucas fases, eu também tive o azar de receber a mesma fase múltiplas vezes, então não vi muito do que tinha a oferecer. Além disso, coincidentemente não tinha nenhum desenvolvedor ali na hora para explicar mais sobre o projeto – por isso mais conjecturas da minha parte nesse pedaço. Ainda assim, o conceito do jogo parece diferente o suficiente para que, com mais desenvolvimento, ele possa se tornar algo muito divertido.
Apesar de ficar em um lugar meio recluso e dividir a atenção com vários outros pontos de interesse do evento – até para quem queria só ver jogos indie – a indie area trouxe um espectro bem variado de projetos que, em sua maioria, são empolgantes. Apesar de ser decepcionante ver o uso de inteligência artificial lentamente se infiltrando nesse meio, não faltaram projetos feitos com criatividade, suor e paixão de pessoas reais para empolgar e me assegurar que o fator – e os defeitos – humanos ainda são parte integral do meio. Conversar com essas pessoas é sempre empolgante de diferentes formas – não só pela troca de experiências com pessoas naturalmente muito diferentes, mas também para ter a perspectiva de bastidor desses jogos que sempre tem algo a ensinar para quem gosta desse meio. Por mais que o evento mude de nome e tente se comercializar cada vez mais, para mim o grande coração da atual gamescom latam ainda são os indies e as pessoas que os fazem acontecer.