Um dos temas mais recorrentes na internet atualmente é o uso de inteligência artificial. Além da parte tangível quanto ao mal que elas causam ao planeta pelo consumo exagerado de energia, existe uma discussão recorrente sobre seu uso em áreas criativas. Uma inteligência artificial não é capaz de criar nada, mas ela pode olhar para várias obras existentes em diferentes mídias e sintetizar algo a partir delas. De certa forma, esse parece ser um processo similar ao dos humanos: olhar para o que existe ao nosso redor, e usar isso como referência para fazer algo artístico. A diferença é que, com o desenvolvimento da humanidade, nós fomos expandindo nossas capacidades artísticas através da criação de coisas verdadeiramente novas.
Resumidamente, as expressões artísticas dos homens das cavernas eram bem mais limitadas que as dos egípcios, que também eram mais limitadas que as dos renascentistas, e por aí vai. Isso é a prova que, nesse longo processo da evolução humana e das artes, tudo só pôde se moldar graças às mãos humanas. Sendo assim, é possível concluir que se máquinas assumissem controle da criatividade humana, as nossas expressões artísticas ficariam estagnadas. Com isso tudo em mente, me parece muito necessária a valorização do toque humano na arte, e é aí que entra algo que me inspirou a pensar muito sobre isso: Fantasian.
Fantasian é o jogo mais recente do estúdio de Hironobu Sakaguchi, o designer por trás da série Final Fantasy até os anos 2000. O jogo, que agora está sendo lançado para consoles com o subtítulo Neo Dimension, é um RPG que retorna às origens mecânicas dos jogos que Sakaguchi é conhecido por fazer. Ele tem mecânicas inovadoras que tornam a experiência mais palatável para um público moderno, mas sua proposta é a de ser um RPG mais tradicional como os primeiros Final Fantasy.
O que mais destaca Fantasian, porém, é seu visual, com cenários inteiramente feitos em dioramas. Esses dioramas são construções físicas em miniatura dos ambientes do jogo, que por sua vez são fotografados de vários ângulos e podem ser explorados como qualquer cenário 3D no jogo. A arte de criação de dioramas é algo muito delicado e que exige uma paciência considerável, já que a ideia é reproduzir cenas complexas em miniatura preservando ao máximo seu realismo. Fazer isso com mais de 150 cenários para o jogo exigiu um time de mais de 100 pessoas que já tinham experiência na criação de maquetes – especialmente para séries de tokusatsu – e muito tempo de produção, mas o resultado é simplesmente impressionante. O que é inerente à produção de dioramas também, é a necessidade de ser criativo ao adaptar coisas reais para miniatura.
Se você precisa fazer vegetação, por exemplo, não pode simplesmente pegar folhas de uma árvore qualquer e usá-las, pois elas obviamente não atenderiam à escala do projeto. A necessidade constante de utilizar materiais pequenos para recriar estruturas maiores exige muita adaptação desses materiais, o que cria seu aspecto mais charmoso: imperfeições.
Desde suas origens, a tendência dos video games tem sido se tornar cada vez mais realistas. Um problema inerente dos mundos em 3D é que reproduzir as imperfeições do mundo real exige muito poder de processamento, ao mesmo tempo que é uma das características mais importantes da nossa realidade. Humanos são imperfeitos; o que humanos fazem é imperfeito. Assim, o uso de dioramas em Fantasian traz exatamente o que é necessário para ser realista por meio dos erros humanos.
Ao observar qualquer cenário no jogo – principalmente os internos extremamente detalhados – você vai encontrar muitos pequenos defeitos. Eles são discretos a ponto de não distraírem, mas um olhar atento é capaz de encontrá-los. A textura de uma parede desgastada, as marcas de pincel na tinta em madeira, as marcas de digital em massas de modelar – tudo isso torna aquilo autêntico. É um mundo, acima de tudo, palpável. A familiaridade causada por tudo isso, junto da nostalgia evocada por suas mecânicas em fãs de RPGs antigos, cria um tipo de ligação muito única com esse jogo, que parece muito conectada com os tempos em que a criatividade era usada para compensar limitações tecnológicas.
Essas foram todas sensações que eu tive enquanto jogava e me via encantado pelo trabalho nos cenários. Imagine minha surpresa então, quando fui buscar mais sobre o processo de criação do jogo e descobri que esse era um dos elementos mais importantes para o Sakaguchi. Nessa entrevista ele menciona como ele queria trazer esse visual mais analógico para evocar a sensação que isso foi feito por mãos humanas, o que traz uma sensação única para o jogador. Em uma outra entrevista , dessa vez com Nobuo Uematsu, o compositor da série Final Fantasy e de Fantasian, ele também menciona algo parecido. Aqui, ele fala como ama os sons produzidos por instrumentos em mãos humanas, já que há algo de diferente neles. Foi interessante ver as mentes criativas por trás desse jogo confirmarem essa ênfase em algo que já havia sido transmitido a mim através de seu trabalho. Nesse caso, assim como em todas as artes, a imperfeição humana é algo indispensável para a mensagem do artista.
Existe um paralelo, intencional ou não, entre história de Fantasian e nossa realidade. Assim como naquele mundo fictício, as máquinas dependem das emoções dos humanos para muitas coisas. A mais preocupante, como dito no começo, é a substituição dos humanos em trabalhos criativos. Recorrer à inteligência artificial para criar coisas, por exemplo, não “evolui” a arte – por melhor que elas fiquem esteticamente. Humanos erram, mas criam. E como diz a sabedoria popular, o feito é melhor que o perfeito.
Bob Ross, um grande artista que influenciou muitas pessoas a experimentarem esse tipo de expressão, dizia que “não existem erros, apenas pequenos acidentes felizes”. Por mais que pareça um comentário tentando excusar pinturas “feias”, existe um sentimento verdadeiro nele. Na arte, nossos erros são apenas formas diferentes de expressar o que queríamos, que por sua vez expressam algo inteiramente novo. Arte é sobre expressar sentimentos e sentir expressões. Há uma conexão inerente entre humanos que usa a arte como meio, o que possibilita uma ligação através do tempo e espaço. Um quadro pintado por alguém séculos atrás ainda comunica algo para nós, hoje em dia. As partituras de um compositor morto há décadas ainda emociona quem a ouviu pela primeira vez semana passada. E os dioramas montados e fotografados lá no Japão para servirem de cenário em um jogo ainda fazem um brasileiro refletir sobre tudo isso.