Calem a Boca e Joguem Hellsinker – Coluna do Frost #5

Por Jack Frost

Encontras beleza em cada reiteração,

em cada vez que seguistes esse caminho?

Não acharás nada, exceto as cicatrizes que nos desfiguram.

Nada exceto os restos de um mar, há anos morto, atraindo seu olhar.

Nós, ecos do passado, não sentimos nada mais.

Rex Cavalier, falando uma frase chuuni pretensiosa

Enquanto a discussão no Twitter continua na mediocridade — insistindo no mesmo cansado debate sobre a existência de jogos orientados ao público hardcore com um escopo obsessivamente focado nos títulos de Hidetaka Miyazaki (especialmente a série Souls) — vários gêneros de nicho continuam apelando para entusiastas com gostos específicos, desde fãs de simulação, até aqueles que desejam experiências mais lentas e casuais como Animal Crossing ou Moon RPG.

Meu posicionamento sobre tal discussão é complexo, pois creio que o erro principal de quem defende a dificuldade de Dark Souls é ignorar que conceitos como A Morte do Autor existem, o que significa que intenção artística pode existir, mas não é necessariamente o único modo de apreciar uma obra de arte. considerando a inerente subjetividade da degustação. E sim, videogames são arte. Não se engane entretanto: eu odeio você que defende que devia ter um modo fácil igualmente. Confundir dificuldade e acessibilidade é um pecado capital e eu realmente não creio que alguém no planeta seja contra mais jogos com opções, se comunicado de modo claro. E por favor, não venha com o argumento de que jogos tem uma barreira cognitiva e motora, pois não: videogames não são a única mídia que tem um conceito de dificuldade, apesar de ser manifestado de modo único e peculiar.

Livros como Ulisses de James Joyce ou filmes como O Sacrifício de Andrei Tarkovsky não são fáceis de serem apreciados sem a pessoa ter algum conhecimento prévio das mídias que eles se localizam e de alguns contextos específicos de suas criações. São obras de difícil compreensão e recomendar uma resenha para a pessoa se localizar é algo comum. Não penso que é muito diferente de buscar um guia para se localizar nas ruínas de Bloodborne, ou muito diferente de ouvir o Vaatividya explicando como a complicada narrativa de Demon’s Souls funciona. Entretanto — a apresentação do conteúdo, mesmo que torne uma obra mais difícil de ser apreciada — é parte essencial de tudo que citei esse parágrafo. Goste ou não, o modo que tais experiências passaram suas sensações são inerentes à dificuldade. E isso é ok, mesmo que também seja ok colocar um mod para facilitar Dark Souls.

Tarkovsky, fã de metáforas visuais, não é um diretor fácil de ser assistido num geral.

E por favor, eu acho que modos de acessibilidade são o básico que uma empresa grande devia fornecer nos seus jogos. Isso não apenas facilita para aqueles que tem problemas motores, sensoriais ou até cognitivos — mas também permite que as pessoas que não querem muito desafio se divirtam com jogos mais difíceis. Então, por que eu não me junto ao Movimento Só no Fácil? Porque uma dificuldade ainda implica que o jogo está dentro da intenção dos criadores, e isso vai contra jogos que queiram que a experiência seja inerentemente difícil. Um modo acessibilidade já estabelece que você está modificando o jogo para ele se adaptar às suas necessidades, e isso une o melhor dos dois mundos: acessibilidade e intenção. Irrelevante do quanto você esperneie, o fato do jogo ser arte permite que o desenvolvedor faça uma experiência mais de nicho, e isso pode incluir uma dificuldade mais intensa. E cá entre nós: colocar dificuldades como fácil, normal e difícil é pouco intuitivo. O que seria um jogo fácil? O que seria um jogo difícil? Isso não diz nada se é a sua primeira vez jogando algo. Regular a dificuldade livremente como em Pathologic 2 é o tipo de experiência que eu admiro, uma proeza perfeita em comunicação, manutenção da intenção autoral e acessibilidade. O problema é que é demorado fazer algo do tipo, então poucas empresas querem solucionar esse problema de design.

Enquanto rasas afirmações sobre modos de dificuldade em Dark Souls circulam por aí, Pathologic 2 se mantém hardcore e acessível, sem cair no buraco de incluir dificuldades abstratas.

Apesar de quanto eu acho que a discussão devia acabar por aí: que o Twitter continue na mediocridade! Prostituam Dark Souls! Oprimam ele! Exaltem ele! Façam uma grande ceia e levantem as taças. Continuem, pois isso impedirá que essa discussão chegue em um dos meus jogos favoritos de todos os tempos — que faria uma parcela desse Grand Guignol querer se matar de ódio. É o tal do Hellsinker.

A Cultura “Doujin”

Apesar de ser desconhecido entre os círculos de discussão mais convencionais, Hellsinker resistiu ao teste do tempo e se tornou um clássico cult.

Falar de Hellsinker é falar da “cultura doujin — um nicho no Japão dedicado em fazer fanarts, fangames, cosplays e muito mais. Se reunindo em eventos como a famosa feira Comiket, artistas amadores dessa cultura fazem mangás amadores, músicas e até material hentai de suas franquias favoritas. Isso se transformou em mercado e também deu espaço à vários trabalhos originais, de modo que lembra o mercado indie ocidental. Até franquias grandes e conhecidas como Touhou Project, Higurashi When They Cry e Tsukihime começaram como jogos comercializados em uma dessas feiras. Doujin virou um termo para se referir também, basicamente, à indústria indie amadora do Japão. É um lugar que permite todo tipo de material e conteúdo. Desde o bizarro — até o ambicioso — e muitos jovens artistas começaram sendo apenas frequentadores ali antes de entrarem na indústria. É possível dizer que ali é onde se reuniam diversos nichos culturais diferentes. Não é por acaso que o renascimento do gênero visual novel foi praticamente culpa dessa cultura — é o local onde mais aceitam experimentação e ideias bizarras no Japão.

Logo, faz sentido que um gênero com popularidade decrescente — consumido por outros gêneros dentro dos jogos de ação — fosse reviver sua popularidade de modo estrondoso dentro desse grupo dedicado de criadores e fãs. Shoot’em ups — os famosos jogos de navinha — tem seu game design muito derivado do modo que fliperamas operavam. O advento dos consoles fez esse gênero perder o protagonismo. Ainda assim, se perguntassem para mim: “Por onde que esse gênero iria ressurgir para conquistar um novo público?” Eu dificilmente responderia “computadores”. Mas foi exatamente o que aconteceu.

O sucesso estrondoso de Touhou 6 – Embodiement of Scarlet Devil até hoje é um atestado do quanto o nicho da Comiket é influente no mundo todo.

A facilidade para desenvolver jogos para computador, junto com a cabeça aberta para material amador que o público da Comiket tem fez que esse gênero crescesse entre desenvolvedores iniciantes. O marcante Touhou 6 foi um dos principais pioneiros desse movimento, e qualquer um presente nessa época denota que o jogo foi uma febre. Empresas aos poucos ficavam de olho em quem fazia sucesso no meio doujin para caçar talentos e cada vez mais gente se adentrava nesse grupo. Ainda assim, acho claro denotar uma diferença entre o desenvolvedor japonês doujin, e o desenvolvedor indie atual contemporâneo: o Japão tem um mercado extremamente corporativista e viver de jogos doujin não é algo visto como viável ou respeitável.

Apesar disso ser extremamente problemático — especialmente considerando que desenvolvedores ocidentais conseguem se manter bem com jogos menores — é um fator que também gera uma característica interessante inerente aos doujin: são jogos feitos por fãs, para fãs. Ou isso, ou são feitos como alguma espécie de expressão pessoal. A famosa visual novel Higurashi No Naku Koro Ni, por exemplo, foi escrita com base nas experiências de vida do autor Ryukishi07 como assistente social, e ele não esperava que as vendas fossem lhe dar uma franquia altamente lucrativa.

Grande parte dos jogos indies ocidentais modernos são feitos pensando no mercado, apenas olhe a explosão dos “indies roxo”: termo que uso de modo jocoso para definir um movimento de jogos que usam cores vibrantes (especialmente o roxo) e ação rápida. Não acho inerentemente problemático e creio que jogos que gostei bastante (como Katana Zero) se encaixam totalmente nessa descrição. O problema é que sinto que uma das vantagens do mercado indie é poder explorar conceitos que jogos AAA nunca vão poder explorar, e jogos de ação do tipo são conceitualmente simples. Nada muito alien da realidade dos grandes estúdios ou de clássicos retrô. Não estou pregando que jogos do tipo parem de existir, mas sim denotando a saturação que tivemos nos últimos anos de jogos do tipo. Sabe por que? Exatamente porque é um mercado. O mercado ocidental indie segue tendências por bastante tempo, apesar disso também acontecer nesse nicho japonês. A questão é que produções doujin são feitos para um público muito específico e as vezes, é feito simplesmente pelo desejo do próprio criador de criar algo para ele mesmo — que foi o caso do próprio jogo que falaremos nesse artigo. A realidade corporativista tira a visão que fazer doujin é algo profissional de verdade, mas isso também tira a necessidade cultural de sucesso mercadológico.

O mercado doujin tem essa diferença central, e é apenas desse contexto que Hellsinker pode nascer.

Pautado em Esoterismo

A fama que Hellsinker (injustamente) tem de ser um jogo impenetrável e extremamente complexo não vem do acaso. Esse é um jogo que parece que foi feito pelo seu criador, mas apenas para ele mesmo. Derivado de um desejo singular de unir mecânicas complexas com um dos gêneros de videogame mais inerentemente difíceis que tem — Hellsinker é um bullet hell, ou seja: um jogo de navinha que a tela fica coberta de balas mas a área que o dano do jogador é computado é pequena, permitindo você escapar no meio de múltiplas balas por exemplo. Ao mesmo tempo, também é um manic shooter: um jogo de navinha onde as balas aparecem em alta velocidade e você precisa ter um tempo de reação muito alto.

Se as pessoas já tem medo de Touhou por conta de ser um bullet hell, Hellsinker entrega essa experiência e une com elementos de manic shooteré muita bala, e é rápido. Se isso não te dá medo, pasmem: cada um dos 7 personagens tem mecânicas individuais e jeitos totalmente diferentes de jogar. Isso pode incluir manipular uma bolinha de dano na tela, posicioná-la enquanto controla seu personagem, manipular uma turreta ou até usar uma poderosa katana que só dá seu dano potencial máximo em curta distância. Ver um vídeo de Hellsinker só irá te confundir com a bagunça que é.

Você manipula uma corda orbital de dano enquanto atira, enquanto desvia, enquanto tenta recarregar seu SOL, enquanto, enquanto, enquanto…

Felizmente, bagunça não é a palavra que define esse jogo bem. O problema é que ele propositalmente se comunica com um público bastante específico: não se importa de excluir todos aqueles que não tiverem paciência de decifrar como ele funciona para construir essa singular experiência. Eu não estou falando que a exclusão é algo positivo, e sim que o esoterismo é algo inerente do que esse jogo cria em todos os seus níveis, e esoterismo é algo que gera prazer, mas exige esforço.

Você não sabe o que é algo esotérico? Significa, de acordo com o Google: “…todo ensinamento ministrado a círculo restrito e fechado de ouvintes.” Se jogos do gênero já comunicam com uma parcela muito pequena dos jogadores e suas convenções são bem alienígenas para o jogador médio, Hellsinker é muito mais confuso: traz mecânicas complexas e ideias que você esperaria em um RPG de ação. Ele foi feito para comunicar com uma parcela de pessoas que já conhecem como um jogo bullet hell funciona, sendo um produto derivado de um contexto cultural, como detalhado nesse ótimo artigo em inglês.

Imagine você está lá, no meio de vários jogos de navinha doujin, e você vê essa capa preta. Nada está expresso, exceto um logo bizarro e uma capa que parece mais é um disco de uma banda de rock progressivo.

A capa preta, infelizmente de ponta cabeça, é a capa de Hellsinker.

O que pensar desse jogo? Sei lá, está barato. Pegue. Você inicia e descobre que há uma quantidade de palavras bizarras na tela toda e barrinhas em todo canto. SOL, LUNA, TERRA, IMMORTAL e STELLA? O que está acontecendo?

Por que o tempo que eu seguro o botão de tiro muda totalmente o comportamento dos projéteis? Por que o segundo botão de tiro faz bizarrices na tela que eu não entendo? Porque existe um terceiro botão de tiro? Espera, a bomba recarrega? Que porra é essa?

É, hora de pegar o manual, amigão. Lendo os primeiros excertos, você se depara com a história básica:

EXECUTOR

O título dado aos agentes que decidem se aqueles deixados para trás por intenções defuntas devem viver. Os restos do martírio, ressoando com aqueles capturados pelos mesmos desejos, repetindo os mesmos erros, como se fosse uma maldição feita antes do falecimento. Pode se dizer que eles podem ver a luz na superfície selada desse mundo? Será que essa repetição — uma imitação nostálgica de dias que já se foram — os salvam, no fim? Secos, murchos, seus últimos desejos nunca garantidos, eles se arrastam pela terra. Assim são chamados os peões da morte que acorrentam juntos esses corações abandonados.

Descrição do manual de Hellsinker aos “Executores”, o grupo dos protagonistas.

É… Eu acho que nem o desenvolvedor do jogo — um único homem, conhecido como Tonnor — entende o que foi dito no manual, e olha que o jogo demorou 5 anos para ser feito. Por mais que algumas mecânicas básicas sejam explicadas, o conteúdo escrito nesse livreto mais confunde do que ajuda. Hellsinker não quer ser convidativo, porque a sua experiência é inerentemente estranha. Coisas como bombas, pontuações e inimigos são renomeados, transformados em SOL, SPIRITS e PRAYERs. Mecânicas diferentes são apresentadas e o jogo é bastante intimidador de cara, mas não se engane: a graça de Hellsinker não é exatamente a de passar por situações difíceis, mas sim de ter novas descobertas e surpresas.

Interessantemente, a jornada de Hellsinker se assemelha muito mais à beleza de prosseguir em terras diferentes em um jogo de aventura da LucasArts do que necessariamente a de derrotar inimigos amedontradores em DoDonpachi, e esse estranhamento inicial é parte do que torna o jogo especial. Transpor a barreira inicial é um desafio que pode realmente filtrar grande parte dos jogadores, mas recompensa muito aqueles que persistem. Quer saber como?

Hellsinker é um jogo de oito estágios. Quando você começa, passar mais que dois já é bastante difícil por conta do fato que você não se acostumou com os personagens. De exemplo, vou usar o que dominei: Deadliar.

Não muito indicado para iniciantes, Deadliar é um espadachim que consegue dar um dano altíssimo, mas sacrifica muito sua defesa.

Deadliar tem um escudo que desacelera as balas em sua redondeza, mas só pode ficar ativo se ele não usar a katana (de dano altíssimo) ou o tiro primário — o normal que você espera de um jogo de nave, balas comuns.

Você também tem um tiro secundário, que manipula uma espécie de bolinha pelo cenário. Ela dá dano nos oponentes e pode ser manuseada de vários jeitos — desde configurada para te seguir, até deixada em um ponto fixo enquanto gera uma corrente, dando bastante dano. O problema é que isso exige adaptar sua movimentação e configurar enquanto está desviando e atirando, e esse é o desafio de dominar o personagem. Deadliar também conta com bombas infinitas, mas que demoram para recarregar. Elas limpam a tela e danificam bastante os oponentes.

Quando você finalmente pegar a dinâmica e descobrir que pode usar esses poderes para facilitar tudo MUITO — você provavelmente vai recorrer à guias ou gameplays e descobrir algo interessante: aparentemente tem outras versões dos primeiro quatro estágios. Para desbloquear esses outros estágios e o modo treino (essencial para realmente entender o jogo, já que permite você treinar chefões e estágios sem ter que iniciar a campanha toda), precisará passar os quatro primeiros estágios sem usar créditos.

Apesar de toda a dificuldade, Hellsinker conta com uma progressão ótima, que desbloqueia recursos úteis como o modo treino aos poucos,

Inclusive, Hellsinker não tem créditos infinitos. Você tem um crédito a mais. Perdeu todas as vidas duas vezes? Game over. Felizmente entretanto, o jogo tem bastante mecânicas para você recuperar vida e você pode acumular um número bastante grande — chegando até 7 no máximo, mas passar os primeiros 4 estágios sem usar seu crédito leva um tempo. Você treina, melhora, entende cada trecho e derrota o incrivelmente difícil chefão da fase 4. E finalmente, sua recompensa…

Logo quando você passa, do nada aparece algo que não tinha entre o estágio 4 e 5: uma parte de texto. Você lê um texto poético descrevendo de modo estranho, mas não totalmente incompreensível, uma espécie de angústia e dor. Uma narrativa pesada, mesmo que muito confusa pra ser 100% entendida por agora. O jogo literalmente te dá uma mensagem de boas vindas, a música e a arte do menu muda. Os quatro primeiros estágios que você esteve jogando são versões facilitadas dos estágios de verdade, e essas primeiras 5 à 10 horas gastas foram um extenso tutorial. Até a música dos estágios muda para remixes muito mais animados das músicas que antes eram presentes, e o jogo espera que agora você tenha dominado o seu personagem. “Bem vindo ao nosso epígono.” Seu objetivo é alcançar o compressor cármico descrito como “Hellsinker” e claro: mantenha sua dignidade.

Um PRAYER amedrontador inicia o conflito.

Pensa que as surpresas acabaram? Errado. Você não sabe a quantidade de segredos ali e aqui. Chefões secretos, ataques que inimigos só dão em condições específicas e até um estágio de boss rush com mecânicas próprias onde você pode morrer infinitamente. Esse jogo é uma constante experiência de descoberta, onde a recompensa está muito mais em dominar os seus segredos e especificidades do que necessariamente ser o melhor em desviar e atirar. Em sua essência, Hellsinker pode se definir como um jogo de exploração, e não apenas um jogo de ação. E isso só é possível por conta de sua natureza esotérica.

Você não sabe onde está entrando, então toda descoberta que você faz enquanto joga é satisfatória. O sentimento de não entender é o que faz o aprendizado desse jogo tão divertido, tornando a parede inicial muito difícil de transpor, mas muito recompensadora . O fato de ser de um gênero que exige um nível de habilidade e treino alto torna isso ainda mais intenso, sendo uma escolha de design totalmente consciente que reflete em todos os níveis o jogo. Desde o visual, até as escolhas sonoras.

Uma Sensação Alienígena

Esse é o menu principal. Desafio você a explicar as funções de cada botão.

Para te vender ao conceito de entender o jogo aos poucos, Hellsinker não se atrela de nenhum modo às convenções de nomeação que um jogo tem. No lugar de “NEW GAME“, temos “FULL SEQUENCE ORDER“, no lugar de “RANKINGS“, temos “ARCHIVEMENT OF EXECUTORS“. No lugar de “TRAINING MODE“, temos “PRACTICE CHAMBER“. É um dos motivos que algumas coisas (como o modo treino) não se liberam de cara quando você começa o jogo: para te acostumar lentamente com as nomeações esotéricas que foram feitas para cada função, e também te apresentar às suas mecânicas lentamente também, já que há muito o que explorar. A estética também cumpre a mesma função: mesmo que um designer pretensioso chegue e aponte os problemas óbvios de legibilidade de algumas fontes do jogo ou a poluição visual que a UI é, isso é totalmente deliberado e constrói a identidade visual. Nem tudo que está na tela é feito para ser entendido de cara, e isso é ok.

Assim como Monster Hunter ou Phantasy Star Online 2, você irá usar a maioria das informações disponíveis. mas ao contrário desses: Hellsinker quer se poluir para te vender esse futuro pós-apocalíptico, e entender essa poluição é um dos fatores que te gera prazer. Mesmo se você não for fã disso, o jogo conta com bastante opções de usabilidade e você pode melhorar isso com versões alternativas da HUD que são um pouco mais intuitivas e simples, mostrando muito capricho por parte do desenvolvedor.

Isso também se reflete no visual do jogo em si. De começo, a estética é sem graça. Ruínas genéricas e inimigos pouco inspirados é o que o jogo inicialmente te apresenta. Fiquei nos primeiros momentos apenas pelas mecânicas e olhar para os cenários me dava vontade de voltar para Ikaruga ou DoDonpachi DaiOuJou no lugar. Infelizmente, o game designer Tonnor me enganou, pois o visual do jogo melhora quanto mais a gente joga.

A história básica é que o grupo dos protagonistas — os Executores — estão viajando no meio de uma guerra contra seres misteriosos que ameaçam a humanidade, os PRAYERs. O objetivo deles é chegar na “base” inimiga, uma espécie de templo tecnológico construídos pelos humanos para evitar um evento apocalíptico do passado, o tal do Hellsinker. Pelo que é dito, o “vilão” é um compressor cármico — um equipamento que parece interferir no destino e na existência em si, e entrar nesse lugar é revelar segredos sobre o passado perdido da espécie humana. E quanto mais próximo do Hellsinker a gente está, mais a realidade do jogo se torna abstrata e visualmente interessante.

Vamos à templos tecnológicos, espaços abstratos e até para uma espécie de pós vida. Com o tempo, os robôs genéricos de shoot’em up (nome chique para jogo de navinha) são substituídos por aberrações tecnotranscendentais e materializações cibernéticas vis.

Os inimigos abstratos de Hellsinker trazem alguns dos visuais mais idiossincráticos já vistos no gênero.

A música parece boa, de modo bem esperado para o gênero, mas não caia nessa armadilha. Ao contrário do sound design do jogo (tradicional e bem executado, nada mais e nada menos), a trilha sonora de Hellsinker tenta te criar falsas zonas de conforto para te surpreender depois. Os primeiros chefes do jogo tem um tema padrão, e assim: você espera que assim como outros jogos famosos do gênero, a música seja compartilhada entre todos. Entretanto: está enganado. Quando chega no quarto estágio — o Segment 4 (se você jogar bem o suficiente ele para engatilhar esse evento), você é ameaçado com uma música de batidas rápidas, que correspondem muito bem aos padrões de bala frenéticos e maníacos que esse chefe opcional solta. Infame por ser a primeira barreira de verdade do jogo, é a partir daí que o jogo começa a ficar estranho.

Cada chefe ganha uma música individual e os estágios ficam visualmente mais caóticos. Não está na zona de segurança mais, os chefes vão te exigir aprender os seus padrões e peculiaridades para passar. Isso inclui uma aberração abstrata que te força a lutar contra múltiplos subchefes em sequência, batalhas contra inimigos gêmeos ao estilo Devil May Cry 3 e até uma sequência de boot de computador que te obriga a aprender o seu funcionamento para realmente vencer. E a satisfação só aumenta, com trilhas absurdamente memoráveis, uma dificuldade que escala de modo muito racional e uma eclosão fantástica de um espetáculo total no conclusão o jogo. Hellsinker tem provavelmente um dos finais mais memoráveis que já vi, e o impacto dele seria muito menor se você não fosse forçado a aprender aos poucos como esse hostil mundo digital funciona. É o ápice de você ter gastado horas treinando, lendo guias e entendendo tudo que está por trás de uma linguagem estranha. Desde a camada narrativa, até os mistérios escondidos em cada estágio — e é fenomenal por ser o resultado de tudo isso, de modo autoconsciente. Pena que é spoiler e não poderei elaborar muito, mas realmente é loucura. Algumas das reviravoltas são bem bizarras mas interessantes.

É mais do que a clássica relação de desafio e recompensa que associam à Souls, é uma relação parecida com aprender um idioma novo. Você decifrou esse jogo, você entende todas as barrinhas e funções. Você entende a mecânica peculiar de cada chefão e como cada parte do jogo funciona, porque você explorou elas apropriadamente. E eu te juro: cada estágio e chefe tem funcionamentos MUITO diferentes, parecendo que o jogo em si mudou as vezes. Me surpreende muito o jogo ter tantos personagens funcionais e polidos quando ele consegue trazer tanta variedade. Digo facilmente que cada parte da extensa hora que uma partida completa pode durar é estranha e refrescante.

E não se engane: Hellsinker ainda é tradicionalmente bom como um shoot’em up. A graça está na surpresa, mas o polimento (tanto para aqueles que buscam pontuações, quanto para quem apenas quer zerar) é similar ao que pode esperar de jogos como Radiant Silvergun ou Battle Garegga.

 

Um dos estágios de Hellsinker é uma espécie de pós-vida que o jogador pode morrer livremente (se não ligar para pontos), e o desafio está justamente em passar uma boss rush o mais rápido possível.

Inacessibilidade Inerente

Apesar das inúmeras opções de acessibilidade, Hellsinker é inerentemente inacessível

Uma certeza que tenho sobre esse jogo — apesar da narrativa interessante, trilha sonora incrível e visuais alucinantes — é que ele se comunica primariamente pela jogabilidade. Tudo está ali para conversar com a complexidade inerente dela e te dar essa sensação esquisita de estar decifrando um artefato alienígena. Dificuldade e esoterismo são dois fundamentos essenciais para se construir essa experiência e ter apenas um modo de dificuldade é algo que força o jogador a se adaptar. Isso é totalmente possível: a complexidade de Hellsinker permite vários jeitos de passar de um padrão. Desde dar danos de modos diferentes, limpar a tela, desviar e atirar tradicionalmente, se aproximar e cortar o inimigo com a katana ou muito mais. A emergência (quando um jogador pode criar estratégias inusitadas para vencer) é altíssima e forçar o jogador a criar seu estilo de jogo a partir de uma dificuldade fixa é o que torna o final muito mais catártico. É total possível zerar mesmo sem ser o melhor em desviar se souber compensar com estratégia, ou vice versa.

A essência de Hellsinker é querer que o jogador se adapte ao jogo. Se o jogo se adaptasse ao jogador, até os detalhes básicos dessa experiência teriam que ser alterados e as sensações que essa obra traz seriam diferentes. Apesar de estranho, as nomeações idiossincráticas e as barrinhas convolutas cresceram em mim e inspiraram uma onda de jogos. Outro shoot’em up popular, o Akashicverse, é alegadamente baseado nessa sensação e isso é visível. A complexidade pesada te auxilia à criar seu estilo de jogar e ao contrário dos títulos tradicionais do gênero: a otimização estratégica não é 100% garantida por meios que você vai roubar de outra playthrough.

Hellsinker até tenta ser acessível — te dando uma gama de possíveis soluções para um problema e trazendo diversas opções de acessibilidade visual — mas por se comunicar com uma parcela muito pequena de jogadores (familiar com bullet hells e preparados para lidar com uma carga emocional gigante) ele apenas se torna um dos favoritos daqueles que conseguem “clicar” com ele e entender seu apelo. Não é por acaso que é um clássico no Japão e absurdamente bem falado dentro de comunidades do gênero, mas que nem todo mundo consegue ser impactado de cara com sua proposta. Seu sentimento é único, mas é pautado em elementos que criam uma barreira em torno do seu acesso. E mesmo assim, eu recomendo. Um dos melhores jogos que já joguei: intenso, altamente personalizável, quase que uma jornada pessoal. A variação é imensa e a satisfação de decifrar esse inferno imenso é uma das maiores que já tive com videogames. E um easy mode aqui não apenas seria um detrimento para o núcleo da experiência, mas também não ajudaria.

O fato que jogos são interativos torna dificuldade um elemento essencial e idiossincrático. O que seria de shoot’em ups sem a dificuldade?

Então isso significa que o Frost é contra a acessibilidade? Nem fodendo! Só acho que vocês esquecem como dificuldade ajustável (supracitada, lá na parte do Pathologic 2), dificuldade dinâmica, emergência, modos de assistência, e códigos de trapaça são soluções mais inteligentes, eficientes e comunicativas. O “easy mode” é tão abstrato que não diz nada, pois como eu já disse: o jogador geralmente não teve chance nem de testar o jogo ou ter algum indicador.

Eu só quero que vocês calem a boca com essa discussão de ego — com pessoas querendo parecer fodonas por terem zerado Dark Souls e outras querendo parecer inteligentes por criticar o espantalho que é o “gamer” — e busquem soluções diferentes para acessibilidade. Também quero que reconheçam os benefícios dela, sem descartar a possibilidade que dificuldade seja um elemento inerente de certos conceitos de jogabilidade.

E claro, quero muito que vocês joguem Hellsinker.

Recomendações

Ei… Você realmente quer jogar Hellsinker? Bem, vale dizer que o tutorial que já está no jogo é muito bom, mas ele não cobre 100% das mecânicas e peculiaridades. Recomendo esse “guia de usuário” (disponível apenas em inglês) que se adentra no básico. O manual do jogo também é útil — apesar de propositalmente confuso e obtuso. Se quiser coisas mais específicas, ainda tem a página da SHMUPS Wiki que detalha cada mecânica e te indica como desbloquear cada segredo do jogo.

Não se preocupe, nada do que passei aqui vai estragar a experiência nem um pouco. Até mesmo que você veja a forma final do chefão final ou leia uma explicação da narrativa em algum fórum, o fato que a experiência é interativa torna o fato que você jogou e zerou muito mais importante que qualquer informação explícita.

Fico feliz pelo interesse e por favor, comente aqui ou no Twitter o que achou do jogo. Ficaria muito feliz em ouvir, justamente por ser um jogo que dificilmente espero que alguém zere. Mas eu tenho certeza que quem zerar, vai amar.