Como manter seu jogo vivo

Escrito por Tiago Castro
Opinião

Sabe aquele jogo que, de tão famoso, é levado à sobrevida e chega à ascender ao ‘panteão’ dos clássicos imortais? Aquele que é amado ao ponto da comunidade se recusar a deixá-lo morrer?

Vamos discutir exatamente isso aqui hoje: como determinados jogos vão muito além de seu “prazo de validade” e são atualizados com inovações na engine, jogabilidade, gráficos e em alguns casos, a comunidade juntamente a modders conseguem até recuperar conteúdo original cortado da versão final lançada.

Para tanto, será necessário um leve mergulho na história e nos primórdios dos jogos e deixar bem claro que vou tratar principalmente da plataforma PC – visto que os consoles não suportam (e até condenam) tais práticas.

Comecemos com os grandes clássicos – uma fatia considerável dos jogos lançados da década de 90. Posso citar Doom, Wolfenstein, Diablo, The Elder Scrolls, Warcraft, Command and Conquer, Fallout, Baldur’s Gate, Need For Speed, Quake, GTA, Half-Life, Counter-Strike, Starcraft, The Sims, Tomb Raider e muitos outros são alguns exemplos de franquias que começaram lá atrás, nos primórdios e estão vivas até hoje. É muito interessante ver como a indústria em si foi tomando forma e se desenvolvendo com o apoio paralelo da comunidade.

Todos os jogos citados possuem algo fundamental – (re)definiram gêneros e revolucionaram o conceito. Doom e Wolfenstein (ao lado do saudoso e obscuro Catacombs 3D), que basicamente fundaram o gênero tiro em primeira pessoa, o FPS. As séries Diablo, Fallout e Baldur’s Gate que deram forma e estilo aos RPG’s isométricos (hoje também chamados de CRPG). StarCraft, WarCraft e Command and Conquer foram responsáveis pela popularização dos jogos de estratégia em tempo real, conhecidos como RTS (com menções honrosas a Age of Empires, Total Annihilation, Dark Reign e KKND). Vale ressaltar que o mundo dos jogos de estratégia em tempo real parece nunca ter acertado o salto para o 3D total, sempre “derrapou” e o gênero acabou ficando em segundo plano.

Alguns se arriscaram ainda mais – Tomb Raider deu um pontapé inicial no gênero de ação e tiro em terceira pessoa (todo renderizado em 3D), seguido por uma leva de jogos que acabou por se acomodar melhor no PlayStation. 

(Tomb Raider, o origina, pela Eidos)

Dado o pano de fundo, dá pra perceber que a maioria das franquias citadas estão vivíssimas e a todo vapor. A indústria aprendeu muito bem a apostar no saudosismo e, de fato, muitas franquias não só possuem espaço para crescimento como são muito adaptáveis, balanceando o novo e o velho.

A CENA MODDER

O público por sua vez, também fez seu ‘dever de casa’: juntamente ao desenvolvimento da indústria, surge aos poucos, conteúdos feitos pelos fãs. Desde simples mapas para Doom e Wolfestein até conversões totais para Skyrim, o cenário de mods teve um papel fundamental no direcionamento dos jogos – dá pra perceber até como mods famosos foram absorvidos pelos jogos principais.

A palavra ‘mod’ é uma abreviação de ‘modification’

A era dos jogos FPS da engine Build (responsável por Duke Nukem 3D, Blood e Shadow Warrior) trazia consigo um poderoso editor de mapas em que era possível configurar e personalizar inúmeros aspectos do jogo. Como diz o ditado: “passa boi, passa boiada”. Até hoje existem comunidades que lançam mapas e conteúdo de Duke Nukem e Shadow Warrior. Já Blood, tem problemas de direitos autorais e ficou preso num limbo sem luz.

Mas a cena modder parece realmente ganhar fôlego e entra em cena de vez com o lançamento de Half-Life. Não por acaso, o famoso Counter-Strike nasce como um mod de Half-Life e por sinal, acaba ficando mais popular que o jogo que o originou. No começo da década de 2000, surgiu todo tipo de mod de Half-Life – incluindo, pasmem, até um de Rally.

Pensando na forma em que Counter-Strike impactou e revolucionou as jogatinas tão profundamente a indústria (o advento das Lan Houses, focadas em fornecer computadores e espaço), conseguimos ter ideia de como um mod pode ser poderoso e cresce para além de um nicho específico.

O mesmo foi acontecer com DoTA, um mod (um mapa para ser mais preciso) do Warcraf 3. O sucesso foi tão absoluto que fundou um novo gênero e na década de 2010 observamos o queda das Lan Houses e, já com serviços de internet mais acessíveis, surge a era dos MOBAs – que trouxe, por sua vez, uma grande safra de jogos no estilo, de Senhor dos Anéis até Vingadores. Estava delineado até a origem dos eSports.

Também vale ressaltar que o próprio DoTA virou um jogo completo e independente por si só – foi lançado pela Valve no Steam como um Moba, rodando na Engine Source.

(A Valve adquiriu os direitos, desenvolveu e lançou Dota 2 sob sua marca.)

MODS E SEUS NICHOS

Assim, é possível notar como existe um movimento de diálogo entre as desenvolvedoras mainstream e a comunidade mod. Em contrapartida, cabe destacar que em muitos jogos os mods não são suportados, apoiados nem permitidos pelas publicadoras e estúdios. Esse não-incentivo não impede os modders porém: fazem o que podem, como podem. Mesmo com limitações impostas pelos desenvolvedores, existem mods para jogos da série Dragon Age, Star Wars Battlefront, Mass Effect, Metal Gear, Mortal Kombat e outros. 

(Jogue como Keanu Reeves em Metal Gear Solid V)

Um mod que ficou bem famoso nos últimos anos (com direito a influenciar fortemente a franquia principal) é o Brutal Doom. O conceito principal é simples – o autor do mod adicionou litros de sangue, fatalities e uma repaginada na jogabilidade (inimigos mais violentos, armas com recarga e interação com objetos). O sucesso foi bem significativo e em 2016, Doom passou por um reboot, com “fatalities” e litros de sangue.

Aliás, Doom possui uma comunidade muito fiel que desenvolve ports para acomodar altas resoluções, texturas de alta qualidade e contribui com todo tipo de conteúdo para o jogo: Doom original tem 27 anos! Dito isso, é uma pena que os jogos “irmãos” de Doom não tenham gozado do mesmo sucesso. Pra quem conhece, Hexen, Heretic e Strife são jogos que compartilham da mesma engine e possuem um ou outro elemento RPG (inovador pra época) e infelizmente, apesar de uma sequência, não chegaram à década de 2010.

E é claro, existem nichos específicos para a demanda e criação de mods de caráter mais particular. Um exemplo muito curioso é o caso de mods eróticos – muito presente nas comunidades, nada passivas (com o perdão da piada) de Skyrim e The Sims.

Skyrim e a série Elder Scrolls são casos de muito sucesso em mods. Existem projetos de reconstruir um jogo inteiro da série em outros, como é o caso da SkyBlivion e SkyWind (respectivamente Oblivion e Morrowind na engine de Skyrim). E um outro, ainda mais ambicioso, pretende recriar o continente de Tamriel inteiro na Engine de Skyrim. Obviamente, todos estão sendo produzidos há anos, ainda sem data definida para lançamento.

AS PRODUTORAS E A COMUNIDADE

Como apresentado anteriormente, a relação das produtoras e estúdios com a criação de mods nem sempre é a melhor. Há um tempo atrás, a Bethesda juntamente com o Steam, tentou implementar uma sub plataforma de ‘mods pagos’ (como ficou conhecido). Na época, construíram uma loja em cima do Steam Workshop (a parte do Steam que abriga mods) e colocaram preço em alguns mods.

O tiro saiu pela culatra e em pouco tempo, a prática foi descontinuada. O que chamou muito atenção nesse caso específico é, em primeiro lugar, o oportunismo importuno de ambas empresas em buscar lucro e incluir microtransações em conteúdo produzido de forma gratuita e o movimento de resposta avassalador dos modders e da comunidade ao defender a gratuidade dos mods.

No final, a Bethesda e Steam voltaram atrás e deixaram a coisa como estava. Porém, a Bethesda anunciou depois de alguns meses, o Creation Club, que era basicamente a mesma coisa, mas sem o envolvimento do Steam. Quando colocado em funcionamento, os idealizadores da Bethesda disseram que entenderam o recado e que manteriam os mods já existentes intactos e cobram apenas por aqueles que forem produzidos para aquele meio.

Outro caso curioso recente é uma versão para PC de Mario 64. O jogo foi (re)montado na Unreal 4 e todos os recursos foram desenvolvidos por modders de forma independente e colaborativa. A Nintendo, por sua vez, não ficou muito feliz com a notícia e reivindicou direitos autorais, pedindo que os vídeos e materiais sejam retirados da internet. Mas mesmo assim, o mod continua em pleno desenvolvimento.

E AGORA?

A cena modder é gigantesca e claramente muito assunto para se tratar num texto apenas. Cada jogo possui sua própria sub-comunidade de criadores, consumidores de mods e características próprias de seus conteúdos.É nesse sentido que fica interessante perceber a relação de criador-criatura que os mods estabelecem com os jogos. Existem ocasiões em que mods evoluem para jogos completos e independentes – como é o caso de DayZ, que surgiu como uma modificação para o Arma 3 e outros mais simples em que os mods são simplesmente complementos pro jogo original. Nesse sentido, podemos entender que a comunidade de mods é até necessária.

Apesar de tudo, parece que as desenvolvedoras e estúdios não aprenderam (se é que um dia irão) a lidar com a comunidade modder. Nos consoles ainda existem formas de controlar o conteúdo que os jogadores criam e consomem, mas no PC a história já é bem diferente. Podendo ser enxergada como uma terra de ninguém, fica nítido que os mods são um tipo de resposta ou feedback da comunidade para os desenvolvedores.

Desde que os jogos são passíveis de serem modificados, existirão mods. Acaba surgindo uma linha bem tênue entre desenvolvimento e consumo. Em sua maioria, os mods surgem para melhorar os jogos e deixá-los mais confortáveis, acessíveis e mais divertidos aos jogadores e, creio eu, é o centro da questão. Não sabemos ao certo como que a cena vai se apresentar no futuro mas é certo que as desenvolvedoras que se entenderem melhor com a comunidade certamente sairão na frente.

https://www.polygon.com/2015/4/27/8505513/bethesda-skyrim-paid-mods-valve-steam

https://tes-mods.fandom.com/wiki/Paid_Mods

https://canaltech.com.br/games/nintendo-diz-que-port-de-super-mario-64-para-pc-violou-direitos-autorais-164563