Crítica: A Space for the Unbound – Uma tocante ode à vida e suas adversidades

Escrito por Arthur Tayt-Sohn
Crítica

Desenvolvido pela Mojiken Studio e publicado pela Toge Productions, o jogo A Space for the Unbound é mais uma obra vindo de desenvolvedores da Indonésia, que na minha opinião vem se tornando uma referência na cena independente.

Mesclando fantasia com uma narrativa típica de animes e mangás “slice of life”, que eu particularmente gosto muito, A Space for the Unbound conta uma história intimista e tocante, enquanto apresenta uma Indonésia rural do final dos anos 90 que talvez não seja tão diferente da nossa realidade no mesmo período.

Tive oportunidade de conhecer essa história e compartilho minhas impressões nesse review.

O fim do Ensino Médio é também o fim do mundo

O jogo se inicia com um breve prólogo que apresenta o personagem Atma, um estudante do Ensino Médio, e uma criança chamada Nirmala. Os dois estão escrevendo um livro de fantasia e após uma série de acontecimentos, que servem também como tutorial do jogo, Atma cai em um rio e se afoga.

Após isso, ele acorda em sua sala de aula e se dá conta que tudo não passou de um sonho. Nesse momento conhecemos Raya, a namorada de Atma. Estranhamente Atma não tem memórias dos acontecimentos passados, esquecendo até mesmo de quem é Raya.

Raya relembra Atma sobre a relação dos dois e dá um resumo de sua vida: um estudante do Ensino Médio que está prestes a se formar. Os dois precisam preencher um formulário para que decidam o que vão fazer no futuro, mas ao invés disso criam uma lista de coisas que querem fazer juntos.

A partir daí Atma e Raya partem em sua pequena aventura onde devem realizar todos os seus objetivos da lista, em uma jornada que também envolve autoconhecimento e lidar com seu próprio passado.

Vivendo em uma pequena cidade rural

O jogo é ambientado em uma pequena cidade chamada Loka. Essa cidade é situada na zona rural da Indonésia, no final dos anos 90. Um período de importantes mudanças, com a chegada da tecnologia, bem como as mudanças naturais que ocorrem em jovens que estão chegando à vida adulta.

Sua estrutura é bem simples. É um jogo típico de adventure onde você vai explorar ambientes 2D, conversar com as pessoas e deve resolver alguns puzzles. Isso envolve andar bastante de um lado para o outro, coletar itens, etc.

O jogo conta com uma mecânica bem diferente chamada “Dimervenção”, onde você é capaz de entrar na mente de alguns personagens para entender suas aflições e ajuda-los a superar traumas, com objetivos diversos. Seja para conseguir um item que você precisa ou liberar algum caminho.

A Dimervenção normalmente exige que você resolva alguns puzzles ou colete alguns itens, em alguns casos no mundo real do jogo. Atma então deve explorar bastante a cidade de Loka, bem como conversar com os outros cidadãos para conseguir dicas e itens específicos para solucionar os desafios do jogo.

A Space for the Unbound é bastante simples mecanicamente, mas todos os seus sistemas funcionam muito bem. Os puzzles também não apresentam muitas dificuldades, apesar de em alguns vocês precisar pensar um pouco. Um ou outro que eu precisei buscar a solução no Google porque exigem conhecimentos muito específicos da Indonésia, algo que não é exatamente ensinado fora do país.

O jogo também é separado por capítulos, o que lembra narrativamente algumas obras slice of life. Isso permite que você jogue no seu ritmo, sendo possível “maratonar” ou jogar aos poucos. Os capítulos também servem para desenvolver personagens específicos em cada um, o que é interessante.

A Mojiken resolveu desenvolver arcos de personagem de forma mais focada, onde conhecemos mais a fundo os outros estudantes da Escola de Loka, como Lulu, Erik e Marin. Com isso nós vamos entendendo as motivações de cada um, bem como os acontecimentos em suas vidas que os fizeram ser o que são no momento do jogo.

Um ponto de atenção é a linearidade do jogo. Quando finalizamos um capítulo, algumas áreas, personagens secundários e itens ficam indisponíveis, o que pode travar o jogador a conseguir algumas conquistas e inclusive um epílogo do jogo. Uma seleção de capítulos ao final do jogo seria muito bem-vindo, para que não tenhamos que recomeçar tudo para pegar algo que ficou faltando.

Um slice of life tocante e profundo

Eu sou suspeito para falar, porque slice of life é um gênero que gosto bastante. Essas obras normalmente apresentam narrativas que focam no dia a dia de seus personagens e onde vivem. Em algumas obras é possível também encontrar influências de fantasia e ficção científica.

Um autor atualmente muito popular desse gênero é Makoto Shinkai, que produziu o aclamado Your Name e mais recentemente Weathering With You. O jogo, inclusive, não esconde sua inspiração nas obras desse autor.

Esse gênero também explora bastante temas intimistas e por muitas vezes são dramáticos. Your Name por exemplo é um passeio no parque se comparado com 5 Seconds per Second, outra obra do Makoto Shinkai e que me deixou destruído por dias. Outras obras que também podem ser usadas como referência são A Silent Voice e I Want to Eat Your Pancreas. Mas paremos de otaquices por um momento.

A Space for the Unbound também explora temas semelhantes, abordando situações que envolvem bullying, depressão, ansiedade e as mudanças na vida de pessoas se tornando adultas. A Mojiken trata desses temas com bastante sensibilidade e por mais que o jogo misture fantasia em sua narrativa, as situações são bastante críveis.

O jogo tem o cuidado de desenvolver a maioria dos personagens secundários, sendo alguns deles mais desenvolvidos pela relação que possuem com Raya. O roteiro também deixa explícita a própria relação dos desenvolvedores com as mudanças que a virada do século na Indonésia promoveu, bem como suas vivências como pessoas que viveram em um país colonizado.

Nesse ponto o jogo soa até bastante familiar para nós, que também vivemos em um país colonizado por europeus, o que criou em mim um sentimento de identificação bastante forte. Eu também vivo em uma cidade interiorana, que passou por mudanças tecnológicas na virada do século, vi o surgimento dos cyber cafés, etc.

Assim como na cidade de Loka, minha cidade contava com vizinhanças de casas coloridas lado a lado, com canteiros de plantas na frente, assim como pequenos comércios locais e tantas outras coisas que também são bem características da América Latina.

O jogo conversa muito bem com o público que vive em países assim e isso é muito interessante de se observar, como temos tanto em comum com países que estão do outro lado do globo. A presença de igrejas por exemplo, e até a forma que a palavra é escrita na Indonésia lembra muito o nosso português, certamente por influência dos colonizadores lusitanos na região.

A Mojiken inclusive referencia o Brasil no jogo, com o personagem Ronaldola, claramente inspirado no Ronaldo Fenômeno, já que o jogo é ambientado pouco tempo depois da Copa de 1998.

É importante também citar que o roteiro do jogo é bem escrito, o que é fundamental já que A Space for the Unbound é um jogo focado em narrativa. Um elogio especial também ao time de localização do jogo para o português brasileiro, que não só traduziu os textos como teve o cuidado de localizar de fato com termos e gírias que utilizávamos no Brasil dos anos 90, o que é importante para a imersão do jogador.

Como fã de slice of life, fiquei bastante satisfeito com os temas abordados, com a construção narrativa, o desenvolvimento dos personagens e com o desfecho, que deixa alguns pontos em aberto. E também acho importante citar que existe uma webtoon chamada A Space for the Unbound: Broken Memories, que aborda partes do jogo de um outro ponto de vista, enriquecendo a história e explicando algumas pontas soltas.

A abordagem das questões pessoais dos personagens é intimista e revela a complexidade de cada pessoa, como a nossa formação é influenciada pelo meio em que vivemos e pelas situações que passamos durante nossa vida. É uma história agridoce, que intercala entre momentos mais felizes e outros tristes, como a própria vida é.

E apesar do aviso de temas sensíveis que o jogo apresenta no começo, algo bastante importante para avisar os jogadores que possam ter problemas com isso, eu achei que tudo foi tratado com bastante cuidado, sensibilidade e maturidade.

Não sei se foi meu ponto fraco pra obras desse gênero, mas o desfecho dele me pegou de jeito. O jogo segura bem pra não se perder no seu clímax e entrega um final muito satisfatório. Recomendo que você faça todos os opcionais dos capítulos para que consiga desbloquear o epílogo, que enriquece bastante o final.

A Space for the Unbound não tenta se aprofundar em grandes questões filosóficas, mas conquista pela simplicidade e de abordar o cotidiano, algo que sinto falta em muitas obras hoje em dia.

A relação de intimidade que o jogo cria com seus personagens e seus temas, e como aborda temas tão pessoais e ainda atuais foram muito bem construídos no jogo. A relação de Atma e Raya, e como isso ajuda no autoconhecimento e no amadurecimento de Raya, é tocante.

Se você também curte obras do gênero slice of life, e principalmente se curtiu os filmes do Makoto Shinkai, é bem provável que você também goste da história de A Space for the Unbound.

Belos visuais e sons

A Space for the Unbound tinha me chamado atenção desde que saiu sua primeira demo. Logo de cara, uma arte em anime estampa a capa do jogo na Steam. Quando abrir a página da loja, me deparei com uma pixel art bonita e com muita personalidade.

A Mojiken fez um ótimo trabalho recriando ambientes reais no jogo, em forma de pixels. Eu sou muito fã de trabalhos em pixel art que recriam ambientes urbanos de cidades reais, então fiquei bastante satisfeito com o resultado.

Ao mesmo tempo, o jogo também não abandona sua influência dos animes e mangás, com algumas expressões faciais um pouco mais exageradas. Além da influência do gênero de fantasia, que cria uma combinação interessante de realismo fantástico no jogo.

É curioso também que o jogo recria a tecnologia da época, como computadores antigos e máquinas de arcade. Então é possível encontrar jogos que já eram em pixel art recriados dentro do jogo, com uma identidade nova. Eu gosto bastante quando desenvolvedores fazem esse tipo de coisa.

Isso é importante porque por ser um jogo adventure onde iremos basicamente andar, ele precisa ser agradável visualmente, para que o jogador não perca o interesse. E o jogo conseguiu me prender por todo o tempo, sendo sua arte fundamental nisso.

Acompanhado disso, uma trilha sonora que é bem gostosa de se ouvir. Durante a maior parte temos músicas instrumentais que acompanham os sons do ambiente. No geral são músicas bem calmas, com algumas exceções em momentos de maior tensão no jogo.

Isso funciona muito bem, a música instrumental de fundo não atrapalha que o jogador preste atenção nos diálogos e nos seus objetivos e também identifica o tom narrativo daquele arco. A trilha sonora da escola tem um tom mais alegre, enquanto o tom da trilha em algumas Dimervenções tem um tom mais misterioso, por exemplo.

E ao final, quando o jogo fecha a sua narrativa, você é presenteado com uma canção com vocais belíssimos e que também foi pensada para combinar com a história do jogo. O nome da música é convenientemente chamado “Uma ode à vida” e na letra é possível identificar algumas temáticas do jogo.

É visível o carinho que os desenvolvedores tiveram com o jogo e mostra como os desenvolvedores independentes da Indonésia vem se aprimorando mais e mais a cada lançamento.

A própria Mojiken já tinha demonstrado isso em outros jogos com artes maravilhosas, como She and the Light Bearer, When the Past Was Around e A Raven Monologue. Além de uma excelente experiência narrativa, A Space for the Unbound mantém o padrão de qualidade artística que a Mojiken vem trazendo durante esses anos.

Uma ode à vida

A Space for the Unbound superou minhas expectativas. Desde a primeira demo que eu joguei, eu sentia que seria um bom jogo, mas consegui ainda ser surpreendido além dessas expectativas.

Naturalmente é um jogo que precisa ser jogado em um ritmo diferente, por ser um adventure em que você não vê tanta ação acontecendo na sua tela. Mas mesmo se não seja o seu tipo de jogo, vale a pena conferir se você gosta de narrativas intimistas e tocantes. E claro, se você curte um draminha também e não se importa em derramar algumas lágrimas jogando.

E apesar de tratar de temas como depressão, o jogo fala muito mais sobre como é bom viver, apesar de tudo. E que as adversidades sempre irão existir, sendo mais importante como lidamos com elas.

Além disso, gostei de ver a Indonésia sendo representada pelo seu próprio povo, de forma que conhecemos um pouquinho mais do país e da sua cultura, pelos olhos deles mesmos. E fiquei particularmente feliz de ter me identificado tanto em alguns pontos, seja lembrando um pouco de como era minha cidade na virada do milênio bem como com a referência ao Ronaldo, mostrando uma lembrança carinhosa e positiva que os indonésios têm do nosso país.

E pra ser sincero, eu não ficaria surpreso se o jogo fosse adaptado para um anime futuramente. Sua narrativa e arte combinariam perfeitamente com uma obra slice of life animada. Se alguém da Mojiken ler esse review, fica a sugestão.

A Space for the Unbound abriu o ano de lançamentos independentes de forma bastante positiva, na minha opinião. Era um dos jogos que mais estava aguardando e estou bastante satisfeito. Em meio a tanta turbulência que vivemos atualmente, o jogo foi uma pausa reconfortante para respirar e apenas apreciar a obra.

Nome do jogo:

A Space for the Unbound

Publisher:

Toge Productions

Desenvolvedora:

Mojiken

Plataformas Disponívies:

PC, Playstation 4, Playstation 5, Xbox One, Xbox Series S|X, Nintendo Switch

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge