Crítica: Afterlove EP e a importância das relações interpessoais em tempos difíceis

Como se reconstruir após a partida de alguém muito amado? Esse é o desafio proposto por Afterlove EP, jogo desenvolvido pelo estúdio Pikselnesia da Indonésia, país que vem me chamando muito atenção pelos seus jogos indie. O próprio Afterlove EP foi desenvolvido por pessoas que trabalharam nos excelentes Coffee Talk e A Space for the Unbound.

Esse fato por si só já era o suficiente para me interessar, mas além disso o jogo é inspirado em mangás slice of life e música. E ainda por cima músicas emo, um dos meus gêneros preferidos. Pois é, não foi só uma fase.

Tivemos a oportunidade de receber o jogo antecipadamente e visitamos Jacarta, a capital da Indonésia, para conhecer a história de um jovem passando por um doloroso processo de luto. Por ser um tema sensível, é desejável deixar avisos de gatilho. Porém, aviso de antemão que não encontrei nada que pudesse deixar alguém desconfortável. Podem ficar tranquilos.

Recomeçando

Em Afterlove EP, o protagonista Rama está no momento mais decisivo da sua vida. Um ano atrás, com sua banda Sigmund Feud próxima de chegar ao estrelato, sua namorada Cinta morre. Durante esse ano que se passou, Rama passa por um doloroso processo de luto.

Após esse período, com suas relações pessoais despedaçadas, sua saúde mental degradada e sua banda em um hiato que parece ser definitivo, Rama tem um mês para encontrar uma saída. Para agravar a situação, Rama constantemente conversa com Cinta, sem entender se ela é um espírito que o acompanha ou um devaneio de sua imaginação.

Seus colegas de banda, Adit e Tasya dão a Rama uma última chance para fazer a banda “acontecer”. No final do mês irá ocorrer um show, que pode ser o último da banda. E você tem esses dias para se preparar. Nesses 28 dias, ele também precisa recuperar sua saúde mental, reconstruir antigos laços de amizade, construir novas relações e redescobrir seu talento musical.

E isso vai depender totalmente das suas escolhas.

Um slice of life musical

Introduzindo um pouco desse gênero para quem não está familiarizado, histórias slice of life normalmente contam histórias do cotidiano e focadas em seus personagens, sendo histórias mais intimistas e em ambientes reconhecíveis, como cidades ou áreas rurais, e não raramente ambientadas em locais reais.

São histórias sobre o “mundano”, como nossas relações pessoais e com o local onde vivemos e comumente flertam com o melodrama, podem contar histórias de romance, mas também sobre amizade, e questões pessoais. Isso não impede que existam histórias de comédia slice of life. É um gênero que considero um pouco “lento”, o que não é uma crítica, mas apenas para dar uma ideia geral de como essas histórias funcionam.

Algumas histórias bem conhecidas do gênero são Oyasumi Punpun, My Dress-up Darling, Kaguya-sama: Love is War e filmes do Makoto Shinkai (Your Name) como Garden of Words e 5 Centimeters per Second, sendo esse último meu preferido e um filme que desgraçou minha cabeça.

Dada essa breve introdução no gênero, Afterlove EP funciona basicamente como um slice of life. Você controlará Rama e passará esses 28 dias realizando atividades do cotidiano, como conversar com pessoas próximas, participar dos ensaios da banda, tentar arrumar um emprego, ir para sessões de terapia, etc.

Tudo isso ocorre em uma perspectiva de visão lateral, onde você irá se locomover pela cidade e conversar com as pessoas, como em uma visual novel. O gameplay do jogo é basicamente isso, exceto em momentos onde você irá tocar alguma música e então você precisa passar por um minigame de ritmo. Esse minigame é opcional, por sinal. É possível automatizar no menu de opções.

O jogo se desenrola nesse esquema de viver o cotidiano. Cada dia permite que você realize duas atividades, uma durante o dia e outra durante a noite. Após isso, você dorme e acorda no dia seguinte. E como em um slice of life, não espere grandes reviravoltas ou, sei lá, o fim do mundo ocorrendo. O ritmo é esse mesmo e é realmente pra quem aprecia esse gênero.

O gameplay dele tem alguns poucos problemas bem pontuais, na minha opinião. Senti falta de uma forma de recomeçar um minigame musical, caso eu queira conseguir uma pontuação perfeita mas tenha errado alguma nota. Ao pausar, o jogo só me dá a opção de pular o minigame.

Também senti falta de pausar e dar load no meio de um diálogo ou cena, caso eu queira refazer algo. É preciso avançar toda a cena e só depois ter acesso ao menu, sendo mais fácil fechar o jogo e reabrir.

Um problema mais técnico que tive algumas vezes ocorreu durante diálogos com Cinta, que eram cortados no meio como se eu tivesse ativado o avanço automático das conversas. Eu precisei fechar e abrir o jogo algumas vezes, para corrigir isso.

Infelizmente o jogo também não conta com localização em português brasileiro, o que é um ponto bastante negativo por se tratar de um jogo totalmente focado em narrativa.

Um novo começo

Assumindo agora o controle de Rama, cabe a você decidir como será esse processo de reconstrução. Você escolhe o seu caminho e suas decisões vão impactar profundamente o futuro de Rama. Escolha com sabedoria.

Você irá conhecer diversos personagens. Alguns velhos conhecidos de Rama, como seus colegas de banda, outros que eventualmente se tornam mais próximos, como a namorada de Adit, a modelo Regina e também novos laços podem ser formados, como a psicóloga Dra. Santi, o funcionário da loja de discos Satria, Kak Mus, barista do café Coffee Chat e Mira, que trabalha na agência de modelos de Regina.

Além de interagir com os outros personagens, é possível reviver as memórias de Rama com Cinta e também desenvolver os talentos musicais do protagonista, se apresentando em alguns lugares públicos.

Inclusive, Cinta é uma personagem muito importante na história. Isso porque Rama consegue não só ouvir sua voz em sua cabeça, mas também conversar com ela. E durante o jogo ela terá participação ativa em praticamente todos os momentos da vida de seu namorado.

Durante esses 28 dias, você deve definir o futuro de Rama. Escolher quais relações cultivar, se irá fazer ou não terapia, desenvolver interesses amorosos, ou não, relembrar memórias com Cinta, entre outros.

Após esse período, você chegará a um final que irá variar com as escolhas que você fizer. E bom, o final pode variar de muito ruim até um final perfeito, passando por alguns mais agridoces. Isso permite que o jogo tenha um bom fator de rejogabilidade, inclusive.

E o final pode ser bem imprevisível, inclusive. Em um dos finais que eu fiz, eu imaginei que seria um bom final, mas fui surpreendido com um momento amargo após os créditos. Uma imprevisibilidade que eu particularmente gosto e que me fez refletir sobre o que fiz de errado.

Você não consegue controlar a reação das pessoas ao que você fala e faz, o que é muito interessante. Inevitavelmente você passará por momentos de conflito e que deixarão o jogo sem uma resposta óbvia sobre o que vai acontecer depois.

Uma coisa que eu gostei bastante no jogo é como ele de fato dá importância para como você desenvolve suas relações pessoais. Em jogos onde você pode se relacionar com outras pessoas, é muito comum que existam “medidores” de afeto para cada personagem e você consegue até mesmo planejar sua “rota”.

Isso não existe em Afterlove EP. Os personagens não são “medidores” do seu progresso e acho que isso enriquece a experiência. Você precisa de fato cultivar essas relações e você nota dentro do jogo quando essas relações se enfraquecem.

Um momento de surpresa foi quando tentei convidar um personagem para sair e ele se mostrou chateado por eu não estar dando atenção a ele. E aí eu tive um estalo que de fato eu não estava sendo presente e as mensagens desse personagem foram ficando menos frequentes no celular de Rama.

Além do desenvolvimento pessoal de Rama, o jogo também se preocupa em desenvolver os personagens. Conforme vamos nos aproximando de cada um deles, vamos conhecendo mais sobre eles, seus gostos pessoais, sonhos, conflitos internos, etc.

Rama também passa por um processo de auto-conhecimento e acaba percebendo que talvez ele não seja exatamente como pensa e Cinta não era só o que ele projetava que ela era.

O jogo se preocupa muito em mostrar a importância das relações pessoais, em buscar se conhecer, entender os outros e acaba tocando em temas muito pertinentes, como saúde mental, discriminação, vida profissional, mudanças da vida adulta, entre outros.

Tudo muito bem escrito e de bom gosto. E como em algumas obras slice of life, imprevisível. O texto do jogo pode saltar do humor para o drama de uma linha de diálogo para outra, sem cerimônia. Um diálogo que começa de forma descontraída e alegre pode terminar em uma briga.

Isso envolve o jogador, ou leitor, em um carrossel de emoções. E apesar do jogo tratar de alguns temas que podem soar pesados, o texto trata os assuntos com sensibilidade. Não é difícil perder a mão na hora de tratar de temas delicados e, a não ser que o objetivo do jogo seja pesar um pouco a mão nos temas, isso pode ser um problema. 

Por mais que Afterlove EP trate sobretudo de um jovem enlutado, ele não é um jogo depressivo. Pelo contrário, ele reforça a importância de cultivar relações interpessoais e de buscar o autoconhecimento. Além de mostrar um pouco sobre como funciona uma sessão de terapia, para quem nunca fez.

Como alguém que gosta de histórias do cotidiano, fiquei bastante satisfeito com Afterlove EP nesse aspecto. Luto é um processo que todos nós eventualmente iremos passar, se já não passamos. E o jogo mostra que esse processo nunca é fácil e envolve ter que lidar com mudanças de planos, superar o passado, entender o processo de luto dos outros e podendo até passar por momentos de conflitos.

Mas também pode levar a uma mudança de perspectiva sobre a vida. Conhecer novas pessoas, descobrir novos gostos pessoais e até mesmo se conhecer melhor. E como os vários finais do jogo mostram, isso envolve fazer escolhas e nem sempre elas são fáceis. E o melhor caminho, o seu “melhor final”, é um caminho árduo mas que no final vale a pena.

Um jogo que também é sobre arte

Afterlove EP, além de contar uma história intimista e profunda, é um jogo sobre arte e sobre artistas. Para representar isso, o estúdio conta com o trabalho da artista indonésia Soyatu, que assina a parte visual do jogo e a banda L’Alphalpha, responsável pela trilha sonora.

A direção de arte do jogo é bastante inspirada em mangás, o que é muito usado em jogos visual novel. Gosto bastante da arte do jogo e como ele se inspira em mangás mas não fica com uma aparência de uma obra japonesa de fato, sendo uma arte bastante característica.

E o estilo dá aquela sensação de estar “jogando” uma revista em quadrinhos, com os personagens com contornos bem marcados e o uso de figuras geométricas em diálogos. Além de ser tudo bastante colorido.

Eu sou suspeito pra falar sobre a trilha sonora por ser um gênero que eu gosto bastante, tendo músicas que são rotuladas oficialmente como indie, mas que flerta muito com o emo e o midwest emo.

A cena emo e indie da Indonésia é bastante rica, por sinal. Talvez eu tenha há algum tempo uma playlist de midwest emo indonésio, não estou dizendo que tenho, apenas que talvez. Mas me senti bastante confortável ouvindo a trilha sonora do jogo e me identifico com Rama nesse aspecto. Realmente, às vezes o emo não é só uma fase.

E a banda L’Alphalpha é realmente muito boa. Passei os últimos dias ouvindo os álbuns deles e até estranhei que eles não estão na playlist que eu supostamente tenho. Foi um grande acerto trazer para o jogo artistas locais, pois fortalece a identidade dele e também acaba sendo uma parceria frutífera para todos os envolvidos.

O que vem depois?

Afterlove EP foi um jogo que eu estava aguardando faz um tempo. E ele acabou ganhando um novo significado com o falecimento do seu idealizador, Mohammad Fahmi, que nos deixou em 2022. Nem imagino como deve ter sido o processo de desenvolver o jogo após esse acontecimento, para os seus amigos e colegas de trabalho.

Como último projeto de Fahmi, o jogo tem um desfecho mais agridoce ainda. A sensibilidade dele fará falta, principalmente em tempos difíceis como os que vivemos, em que parece que as relações interpessoais são cada vez mais frágeis. Sua visão sobre a importância dos laços afetivos é um legado importantíssimo para todos nós. Em Afterlove EP fica bem claro o quanto Fahmi entendia a importância dos laços afetivos e quis compartilhar com todos essa visão.

Fahmi deixa em Afterlove EP uma importante e sensível lição sobre recomeços, sobre cultivar laços e cuidar uns dos outros. E isso nem sempre é fácil e nem sempre tudo termina da forma que gostaríamos. E por mais que possamos guardar lembranças com carinho, é importante não se deixar perder no passado e seguir em frente.

Que possamos aprender essa importante lição que Fahmi nos deixou. Além de uma forma de honrar sua memória, é uma forma de tentarmos viver melhor em tempos difíceis.