Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Você é um cidadão comum, fazendo coisas comuns. Acordando, indo trabalhar, pagando suas contas e impostos em dia e vivendo um dia após o outro. O que você não faz ideia é que toda sua rotina, e de milhares de outras pessoas, são transmitidas 24 horas por dia em um reality show.
Bem-vindo à Arcadia, a cidade do futuro. O estúdio Out of the Blue Games apresenta o Sonho Americano se realizando. Mas algo dá errado e um dos seus cidadãos parece estar próximo de acordar desse sonho.
Tivemos a oportunidade de jogar antecipadamente American Arcadia e contamos sobre essa experiência de deixar o “sonho” para trás.
Arcadia é uma cidade ambientada nos nostálgicos anos 70. Você é Trevor Hills, um cidadão comum que trabalha em um escritório analisando documentos e fazendo contas. Após alguns dias em sua rotina normal, Trevor começa a notar acontecimentos estranhos.
Uma música misteriosa que toca de tempos em tempos que parece tentar se comunicar com ele, um amigo misteriosamente desaparecido, um outdoor que parece revelar o destino do seu amigo.
Após alguns dias, Trevor precisa encarar a dura verdade: sua vida é uma mentira. Durante esses 28 anos de existência, sua vida e de todos os que ele conhece estavam sendo televisionados em um reality show. O problema é que a vida chata, comum e entediante de Trevor não é lucrativa para a Walton Media, empresa responsável pelo show.
Na mira dos figurões que querem “aposentar” Trevor do programa, ele deve agora tentar fugir da cidade. Angela Solano, a responsável por transmitir a vida dele e de outros cidadãos, decide ajudar em sua fuga. A partir daí uma corrida contra o tempo começa para tentar salvar a vida desse cidadão que só queria viver sua vida comum em paz.
Talvez Scorsese discorde do termo, mas American Arcadia é um tradicional jogo plataforma cinematográfico. Pelo menos em partes. Você irá alternar entre os dois personagens e cada um deles tem uma jogabilidade diferente.
Controlando Trevor, o jogo funciona em jogabilidade de plataforma de movimento lateral. Você irá na maior parte do tempo se movimentar de um lado para o outro, subir em locais mais altos, resolver alguns quebra cabeças e andar de maneira praticamente linear.
Jogando como Angela, você terá uma jogabilidade em primeira pessoa. Você irá explorar alguns ambientes corporativos e resolver quebra-cabeças para ajudar Trevor em sua fuga pela liberdade.
Em determinados momentos do jogo você irá controlar os dois personagens. E aí que rola uma mecânica interessante. Angela pode hackear diversos dispositivos como câmeras, plataformas móveis, portas, etc. Controlando a hacker, você deverá liberar o caminho para Trevor, tendo ainda uma visão de plataforma do jogo.
Em outros momentos você deverá controlar Trevor e ainda controlar Angela hackeando dispositivos, dando mais dinamismo ao jogo. São momentos onde você deve ativar plataformas em um momento exato para Trevor ou criar obstáculos para seus perseguidores.
As mecânicas do jogo são bem simples e tanto a jogabilidade de Angela, quanto a combinação das duas, ajudam a dar mais variedade ao jogo. Mesmo que o foco do jogo seja bem maior em sua narrativa, ter opções de jogabilidade ajuda a engajar.
Os quebra-cabeças no geral são bem tranquilos, mas isso é a opinião de alguém que adora esse tipo de mecânica nos jogos. Somente alguns são mais complexos, sendo esses nos segmentos finais do jogo. Um em especial me tomou um pouco mais de tempo, mas não tive grandes dificuldades.
American Arcadia é um jogo bastante amigável nesse ponto. Ele não é punitivo quando você falha em um salto ou é capturado, já que ele retorna praticamente no momento anterior, não quebrando o seu ritmo de jogo.
Mecanicamente ele não reinventa a roda. Seus sistemas são simples e funcionam, e isso que importa. Não tive problemas com sua jogabilidade no geral. Um único detalhe que notei foi que em alguns momentos se você retornar a algum ponto onde aconteceu algum diálogo ou cena, eles são engatilhados novamente. Mas isso não impediu o meu avanço no jogo e não foi um problema.
O grande foco do jogo é certamente sua narrativa. American Arcadia se inspira em TV, cinema, literatura e até mesmo parques de diversões para contar a sua história. E além de tudo o jogo é um comentário social a respeito do individualismo, monetização de todos os aspectos da vida, vigilância, etc.
A inspiração mais visível é o filme O Show de Truman, um dos meus filmes favoritos. Estrelado por Jim Carrey, o filme conta a história de Truman, que não faz ideia de que sua vida inteira é um reality show transmitido 24h por dia. Desde seu nascimento, milhões de pessoas o acompanham e todos os que ele conhece, ou simplesmente cruza o caminho na rua, são atores fazendo figuração nessa história.
Mas ao contrário do filme, em American Arcadia a cidade inteira faz parte do show. Alguns cidadãos são mais populares que outros e isso naturalmente influencia em alguns aspectos da vida deles, por mais que eles não percebam.
A cidade de Arcadia, e a história do seu propósito original, foram inspirados no parque EPCOT de Walt Disney. O projeto original previa uma cidade, também chamada de comunidade, que estaria em constante evolução e seria altamente futurista. Uma utopia que Walt Disney nunca chegou a concretizar, devido sua morte prematura.
Essa utopia ambientada nos anos 70 é controlada o tempo inteiro, administrada de forma que ofereça conforto para todos os seus moradores. Ou é isso que parece inicialmente. A cidade tem sempre o clima perfeito, condições favoráveis de vida e tudo funciona em harmonia.
O problema é que esse sonho não é real e quando o programa deixa de ser tão lucrativo como antes, os problemas começam a acontecer. Cidadãos desinteressantes como Trevor não são lucrativos para a empresa e são “aposentados”. Eles ganham uma viagem para Fiji, mais uma clara referência à Truman, e nunca mais são vistos.
E esse é um dos primeiros comentários sociais do jogo. Trevor gosta da sua vida pacífica, mas ela não é interessante para o público e consequentemente não é lucrativa para a Walton Media. Ele é uma boa pessoa, tem um círculo de amigos que, apesar de limitado, genuinamente gostam dele e mesmo assim ele está prestes a ser descartado pela Walton Media, enquanto alguns dos cidadãos de pior caráter da cidade são promovidos ou se tornam extremamente populares pelo público.
Podemos colocar isso em perspectiva com a própria dinâmica das redes sociais e das big techs. Quantas vezes vimos o quanto essa dinâmica favorece o engajamento das pessoas com os piores traços possíveis?
Em um momento do jogo, durante a apresentação do resumo da semana, há um quadro que celebra o comentário mais “venenoso” das redes sociais. Um espectador faz um comentário sobre alguns cidadãos de Arcadia e isso é lido ao vivo e celebrado.
Outra cena interessante do jogo ocorre em um momento onde um dos personagens está praticamente tendo seu momento de “Um dia de fúria” e é justamente nessa hora que o programa está batendo recordes de audiência, com o público interagindo via chat em tempo real.
Esses são só alguns dos temas tratados no jogo. A forma como os cidadãos de Arcadia são vistos como meros ativos não é tão diferente de como as grandes corporações tratam os seus trabalhadores.
American Arcadia surpreende com uma narrativa que trata de temas bastante atuais de forma bem-humorada, brincando muito com referências de programas de TV e filmes clássicos do cinema, fazendo algumas piadas propositalmente bestas que eu particularmente gosto muito.
O jogo conta com um plot twist que surpreende e também serve como um outro comentário social, algo que já vi parecido em um dos meus episódios preferidos de Black Mirror. Não direi qual porque quem assistiu pode acabar entendendo o plot do jogo.
Um único momento que eu considero uma pequena escorregada na narrativa é em uma cena em que pode ficar a impressão que a mensagem passada joga a maior parte da culpa da existência de Arcadia nos espectadores.
Em uma era da Sociedade do Espetáculo, é fundamental entender o peso dos meios de comunicação em massa na criação de tendências de consumo e de comportamento, além de influenciar nossas próprias relações sociais. Algo que foi aprofundando pelas big techs e pela lógica dos algoritmos.
O próprio jogo parece entender isso na maior parte do tempo e reconhece por exemplo como grandes corporações conseguem capitalizar até mesmo situações que à primeira vista os prejudicariam. Também reconhecem o papel dessas corporações na formação de lobbies junto com o Estado burguês.
No geral o jogo acerta bastante em sua narrativa. Não são propostas soluções, até porque isso é algo bastante complexo, mas American Arcadia se mostra bastante consciente. Talvez bastante cínico, por tratar com deboche e sarcasmo situações tão problemáticas, se apegando em seu tom bem-humorado de lidar com os temas.
Particularmente eu gosto bastante de jogos que se propõem a refletir sobre temas sociais. E o humor é uma boa ferramenta para isso, até pra não deixar o clima da narrativa extremamente pesado. American Arcadia faz isso bem, fazendo piadas quase que o tempo inteiro mas ainda tendo aqueles momentos “putz, pior que é assim mesmo que acontece”.
Um ponto na narrativa que poderia ser um pouco melhor é no desenvolvimento da personagem Angela Solano, que ajuda Trevor em sua fuga. Eu senti que ela ficou um pouco apagada e conhecemos bem pouco dela.
Acho que faltou uma construção melhor das suas motivações e até mesmo de sua origem, que justifiquem melhor os motivos de ela estar ajudando Trevor.
American Arcadia também chama atenção pela sua estética. Como a cidade é ambientada nos anos 70, ela emula essa época ao mesmo tempo que combina o retrofuturismo.
A cidade parece aquelas imagens antigas de como as pessoas do passado pensavam que o futuro seria. Excluindo carros voadores, temos a presença de robôs automáticos de limpeza, monotrilhos de alta velocidade e outras modernidades.
Ao mesmo tempo, o jogo evoca toda a estética da época, desde os trajes dos personagens até o design dos carros, a paleta de cores, a arquitetura, etc. Arcadia é o american dream dos anos 70 e está “vestida” para a ocasião.
Eu gosto bastante da direção de arte desse jogo e como ela é utilizada para criar uma utopia retrofuturista, mas sem deixar de utilizar também inspirações estéticas que foram muito icônicas na época, como a psicodelia e a discoteca.
Um trecho do segmento final brinca de maneira muito interessante também com a estética analógica das TV’s antigas e logo em seguida com um trecho altamente psicodélico, passeando por diversas inspirações da época.
Os segmentos em que jogamos com Angela já são menos interessantes. Isso me parece proposital, já que é bem visível que o mundo fora de Arcadia é praticamente distópico. Prédios corporativos, apartamentos em meio a um mar de outdoors de propaganda…
Esse contraste entre as duas estéticas é também uma forma de mostrar a discrepância entre o mundo real e a utopia da Arcadia. E mesmo dentro da cidade-domo, quando exploramos áreas fora dos limites que os cidadãos podem circular, a diferença no ambiente já é gritante.
A direção de arte traz esse choque de estética que é bastante interessante e retrata bem a diferença entre os dois ambientes, conversando bem com a proposta narrativa do jogo.
American Arcadia foi um jogo que inicialmente me chamou atenção por sua clara inspiração em O Show de Truman, mas que eventualmente mostrou que se sustenta por si só. Sua narrativa é interessante e os temas abordados são bastante atuais.
A escolha da jogabilidade de plataforma cinematográfica é bastante acertada, pois combina bastante com a proposta do jogo. Ao mesmo tempo é interessante que o estúdio tenha arriscado também com a exploração em primeira pessoa.
O grande destaque para o jogo são seus comentários sociais, que apesar de bem-humorados tratam de temas bastante relevantes. Contar uma história, onde o maior objetivo de seu protagonista é poder viver uma vida comum em paz, contrasta com tantas e tantas histórias de heróis realizando grandes feitos.
E as vezes a gente só quer isso mesmo: ter uma vida simples e pacífica, mas que seja uma vida de verdade.
American Arcadia
Raw Fury
Out of the Blue Games
PC, Playstation 4, Xbox One