Crítica: Chained Echoes é brilhante e digno da era de ouro dos RPG’s

Escrito por Arthur Tayt-Sohn
Crítica

Desenvolvido quase inteiramente pelo desenvolvedor solo Matthias Linda, e publicado pela Deck13, Chained Echoes não esconde suas referências em jogos clássicos da chamada “era de ouro dos RPG’s”. Com seus tradicionais combates por turno e ambientado em um mundo de fantasia combinado com steampunk, poderia ser apenas mais um RPG apelando para nostalgia. Mas Chained Echoes é bem mais que isso e conto aqui minha experiência com ele.

Um continente mergulhado em conflitos

O jogo se passa no continente de Valandis, onde um conflito entre os seus três reinos já dura mais de 150 anos. Dividido entre os reinos de Taryn, Escanya e Gravos, Valandis não vislumbra momentos de paz por muito tempo.

Após uma breve cena inicial explicitamente inspirada em Chrono Trigger, você inicia o jogo com Glenn, um piloto de Sky Armor, os mechas do jogo, e mercenário a serviço do Band of the Iron Bull. Sua missão é servir como um exército de vanguarda para recuperar a cidade de Wyrnshire. Para isso, você deve localizar e destruir a Opus Stone que alimenta as máquinas do exército de Taryn, que atualmente ocupa a cidade.

Ao tentar destruir a pedra, uma grande explosão ocorre. Com dezenas de milhares de pessoas mortas, entre aliados e inimigos, os reinos entram em um acordo de paz para evitar uma nova catástrofe.

Sem sinal de Glenn, o jogo altera a perspectiva para a personagem Lenne, que na verdade é a princesa Celestia de Taryn, utilizando um disfarce para viver como uma guarda da cidade de Farnsport, capital do reino, outrora inimigo, de Escanya.

A relativa paz entre os reinos incomoda traidores e conspiradores e após uma série de eventos, um incidente diplomático ocorre na corte de Farnsport e ameaça colocar um fim nesse primeiro ano de paz entre os reinos.

Um RPG clássico, mas modernizado

Após os momentos introdutórios do jogo, temos finalmente o que podemos chamar de um grupo. Inicialmente formado por Lenne e seu amigo Robb, Glenn e seu companheiro de guerra Kylian, a ladra Sienna e o famoso escritor e compositor Victor.

Chained Echoes conta com a tradicional exploração de cenários, entre cidades, vilarejos, florestas, cavernas, etc. Nada muito diferente do que estamos acostumados. Durante a exploração iremos nos deparar com inimigos que aparecem no mapa, não existindo batalhas aleatórias, assim como em Chrono Trigger.

O jogo começa a se destacar em seu sistema de combate. Podemos utilizar até oito personagens em combate, sendo quatro na linha de frente e quatro na retaguarda. Podemos alterar entre eles de forma rápida e sem perder o turno, ou seja, um aliado da retaguarda pode avançar para frente e agir imediatamente.

As batalhas contam com ataques normais e habilidades, sendo divididas em habilidades de dano físico, mágico, buffs, debuffs e utilidades. Além de suas mecânicas voltadas para o combate propriamente dito, as habilidades também possuem uma outra função.

Um dos diferenciais do jogo é a barra de Overdrive, localizada acima dos personagens. Essa barra se inicia na área amarela, onde as habilidades têm um custo normal de TP, os pontos mágicos do jogo. Ao realizar ataques físicos ou utilizar habilidades, a barra avança para a direita. Chegando na área verde, as habilidades ganham bônus e custam muito menos TP para serem executadas. Porém, ao chegar na área vermelha ao final, você entra em estado de overheat.

Nesse estado, seus personagens recebem mais dano e as habilidades custam muito mais TP para serem executadas. Ou seja, o ideal é que você sempre fique em estado de Overdrive. Para isso, ao lado da barra é apresentado o ícone de uma das habilidades. Utilizar uma habilidade correspondente recua a barra, permitindo que você permaneça mais tempo em Overdrive.

Dessa forma, o jogo também exige que você gerencie suas ações para que sempre se mantenha nesse estado, de forma a otimizar suas ações. E isso faz toda diferença em Chained Echoes, pois os combates têm uma particularidade em comparação com muitos outros jogos.

Ao contrário de jogos onde avançamos sempre utilizando ataques normais em batalhas com inimigos comuns, preservando recursos para batalhas importantes, nesse jogo nós iremos nos deparar com consideravelmente menos inimigos no mapa, mas que são mais fortes e vão sempre exigir que você dê o máximo dos seus personagens.

Para isso o desenvolvedor tomou uma decisão de game design pouco convencional. Ao final de cada batalha, não importa com qual inimigo, todo seu HP e TP é restaurado ao máximo. Com isso o jogo se dá a liberdade de tornar cada batalha um desafio real pela sua vida. Não se surpreenda se você vencer um combate com um ou dois aliados de pé só, ou até mesmo morrer em combates contra inimigos comuns do mapa.

Essa ideia, nada ortodoxa e muito arriscada, faz o jogo se destacar entre os outros. Cada combate vencido é recompensador. O jogo exige que você de fato pense na melhor estratégia para cada combate que tiver. E normalmente um ataque normal é a pior escolha possível.

Eu não consigo me lembrar de algum outro jogo em que eu tenha usado tão pouco os ataques normais do meu personagem e isso me deu uma ótima sensação de estar realmente pensando de forma tática. Utilizar buffs e debuffs em batalhas normais é algo bastante comum no jogo, porque todos os inimigos batem forte.

E aí podemos pensar que essa decisão de diminuir o número de inimigos no jogo poderia prejudicar a experiência, exigindo um nível mais de grinding para evoluir, certo? Errado. Outra decisão de game design do jogo foi abolir XP e níveis.

Os personagens recebem GS (Grimoire Shards) em batalhas específicas da história, ou em algumas atividades extras, que são utilizados para liberar novas habilidades. Após alguns pontos gastos os personagens recebem bônus em seus status, algo como se “subissem de nível”.

E como todos os personagens recebem igualmente esses pontos, nenhum deles fica defasado com relação aos outros, permitindo que você utilize todos os personagens do grupo para cada situação. E você muito provavelmente vai utilizar, visto que trocar de aliados e utilizar habilidades que mantenham sua barra de Overdrive no verde é uma mecânica obrigatória a ser dominada.

Os únicos pontos que você recebe ao final de cada batalha são os SP (skill points), que servem para evoluir suas habilidades e torná-las mais fortes. Também é possível conseguir SP extra realizando atividades opcionais que dão esses pontos como recompensa. Desde coisas mais simples como explorar partes do mapa até caçar e derrotar inimigos únicos.

Uma outra forma de progredir seus personagens é fazendo upgrades nas armas, utilizando materiais que você pode comprar ou encontrar em baús e lutas com inimigos, além de combinar e implantar cristais nas armas e armaduras, que concedem desde bônus de status como uso automático de algumas habilidades especiais

Eu já tinha gostado do combate do jogo quando testei a demo dele meses atrás, mas devo dizer que ele conseguiu me surpreender ainda mais na versão completa e não tenho outras palavras para descrever o sistema a não ser brilhante.

Por mais que o combate seja tradicional, o desenvolvedor modernizou ele de uma forma que mesmo veteranos dos RPG’s vão precisar aprender a jogar e dominar suas mecânicas. As decisões e soluções tomadas por Matthias Linda tornam esse jogo único.

E mesmo essas mecânicas ainda são subvertidas nesse jogo, como alguns inimigos específicos que tem a habilidade de simplesmente alterar todo o padrão da barra de Overdrive, exigindo que você planeje com ainda mais cautela quais ações executar.

Outro ponto interessante a se destacar sobre o combate é sobre os inimigos, que não atacam de forma totalmente aleatória o seu grupo. Existe um subsistema de hate onde os inimigos tendem a atacar seus aliados que causam mais danos. Também é perceptível que os inimigos optam por atacar aliados mais frágeis ou de suporte.

Eu perdi a conta de quantas vezes meu personagem focado em cura e buffs foi deliberadamente focado. Também será necessário ter meios de proteger seus aliados que causam muito dano mas que são mais vulneráveis, porque eles certamente serão um alvo dos seus inimigos.

E se não bastasse o combate a pé já apresentar sistemas tão complexos e bem executados, o jogo também conta com mechas, que o desenvolvedor não esconde ter se inspirado totalmente em Xenogears, um grande clássico dos anos 90.

Forçando o jogador mais uma vez a se adaptar e aprender suas mecânicas, a barra de Overdrive é novamente alterada. Seus mechas utilizam um sistema de marchas, onde a marcha zero só permite ataques comuns e não altera a barra de Overdrive, a marcha um permite utilizar habilidades a um custo e potência normal, além de mover a barra para a direita, e a marcha dois, que libera versões mais potentes de habilidades, a um custo maior, e move o Overdrive para a esquerda.

Isso altera bastante a lógica de combate, já que o formato de gerenciamento é totalmente diferente. É preciso decidir quais personagens utilizarão a marcha um e a marcha dois. Além disso, quando seu TP acabar, é recomendável voltar para a marcha zero, que permite ataques comuns restaurarem uma boa quantia de TP.

A personalização das Sky Armor fica por conta dos frames, que são o corpo dos mechas propriamente dito. Além de definir os status básicos das máquinas, elas podem alterar sua aparência. Os sets de equipamentos, que são sempre um kit de armas corpo a corpo e um kit de armas a distância, permitem utilizar habilidades específicas e garantem bônus especiais.

Utilizar o mesmo tipo de kit por um tempo aumenta a proficiência, que libera mais habilidades e bônus. No nível máximo, os bônus se tornam permanentes mesmo que você altere seu kit de armas, liberando mais opções de escolhas estratégicas.

Sendo o ponto mais forte do jogo, o combate é extremamente divertido, desafiador e por diversas vezes punitivo. Talvez não seja uma boa ideia você ser ganancioso e tentar forçar ataques que podem te deixar com o status overheat. Talvez não tenha sido uma boa não se curar naquele momento que passou.

E por incrível que pareça, o combate não torna o jogo frustrante. Mesmo que você morra em combate, o jogo permite que você recomece a batalha e acesse o menu antes, para alterar a estratégia utilizada.

Tenho apenas dois pontos de crítica aos sistemas básicos do jogo. Os cristais para os equipamentos são conseguidos de forma bastante aleatória. E como o jogo exige que você os combine para serem utilizados, esse processo pode demandar um certo tempo e paciência.

Além disso o jogo o jogo tem um log muito simples, que não salva os tutoriais dos sistemas e também algumas informações importantes de side quests. E como ele utiliza diversos sistemas que possuem certo nível de complexidade, caso você não tenha entendido totalmente ou esqueça algum detalhe, não há uma forma de conseguir essas informações.

Mas esses pontos negativos impactam muito pouco a experiência com o jogo, que possui alguns dos melhores e mais bem executados sistemas de combate que já vi até hoje.

Um épico de fantasia steampunk

Como dito na introdução, o jogo se passa no continente de Valandis, que está há muitos anos em guerra. Conforme avançamos na história, vamos entendendo melhor a origem desses conflitos e as motivações de cada um.

A história é contada de forma muito direta. O jogo conta com seus mistérios e plot twists, mas é tudo explicado de forma satisfatória, sem deixar pontas soltas. As perguntas não respondidas têm um motivo para terem ficado dessa forma e o desfecho do jogo foi muito satisfatório.

Apesar de ser um tradicional jogo de fantasia, Chained Echoes busca não se prender a tropos e clichês já muito utilizados nesse gênero de jogos. O jogo conta com personagens com diversas camadas, onde nada é preto e branco, mas muitas vezes cinza.

Os diversos protagonistas e antagonistas possuem cada qual sua motivação, suas origens e seus motivos para serem o que são nesse jogo, e isso é explorado muito bem. A organização da sociedade de Valandis também é bem explicada, tanto durante a progressão normal do jogo como em side quests opcionais e documentos que enriquecem a lore.

Até mesmo o restante do mundo é contextualizado, apesar do jogo ser mais contido explorando apenas um continente, algo semelhante com Suikoden, uma das inspirações do jogo, que prefere explorar conflitos regionais que facilitam uma construção de mundo mais crível.

Outra semelhança com Suikoden é o gerenciamento do seu clã. O jogo conta com muito menos personagens, mas também permite que você recrute aliados para sua base em uma ilha remota. Alguns se tornam personagens opcionais para serem utilizados em combate, enquanto outros fornecem vantagens para seu grupo como um todo.

O roteiro do jogo é bastante acessível, já que ele é muito bem escrito, mas sem utilizar linguagens rebuscadas como Tactics Ogre e Vagrant Story, e também sem tentar utilizar conceitos complexos de filosofia e psicologia como Xenogears.

E apesar de possuir seus alívios cômicos, o jogo se permite explorar também tragédias pessoais e temas sensíveis, mas não de forma explícita a ponto de incomodar. O objetivo do jogo é justamente mostrar um mundo crível que, estando constantemente em guerra, atinge diretamente a personalidade e as motivações dos personagens.

Durante a aventura, acompanhamos o desenvolvimento dos principais personagens enquanto eles cometem erros, amadurecem e mudam de opinião conforme são afetados pelos acontecimentos o jogo.

O desenvolvedor soube explorar uma temática já clichê nos jogos, mas conseguindo surpreender o jogador com seus plot twists e revelações. Confesso que eu não esperava o desfecho final do jogo e foi muito satisfatório ser surpreendido, por mais que eu tenha a consciência que pode ser um final divisivo, dependendo da sua expectativa e apego aos personagens.

É bastante interessante como Chained Echoes aborda temas como religião e ciência, desenvolvimento tecnológico, democracia, educação pública, armas de destruição em massa e genocídios, bem como diversos outros temas muito relatáveis em um universo de fantasia.

Principalmente a forma que ele aborda a relação da religião com as pessoas sem se apoiar em clichês batidos como fanatismo religioso explorando a boa fé das pessoas, mostrando outro tipo de relação entre a religião e seus fiéis. Lógico que alguns pontos são um pouco mais óbvios, porém esse é um jogo onde nada é preto e branco.

E apesar de ser um jogo longo para os padrões atuais, podendo passar de 40 horas, não senti que ele estivesse sendo maçante, mas na verdade dando o tempo necessário para que os personagens e conflitos se desenvolvessem no seu tempo certo.

Destaco principalmente o desenvolvimento de Glenn, que tinha tudo para encaminhar para um grande clichê mas surpreende com os rumos que o desenrolar da trama pessoal dele se encaminha. A relação dele com alguns dos outros personagens também é bem explorada.

A história do jogo utiliza de tramas típicas dos jogos de fantasia, mas consegue entregar um roteiro moderno e crível, com reviravoltas interessantes e mensagens bastante atuais. Além disso Chained Echoes consegue surpreender em diversos pontos, por mais que alguns pontos podem ser bastante divisivos.

Belíssimos visuais e trilha sonora

Como todo bom e velho RPG da era 16 bits, o jogo conta com uma bela pixel art. Chained Echoes não economiza nas cores e nos detalhes. O diretor Matthias também fez esse trabalho todo praticamente sozinho, contando apenas com alguns freelancers para produzir principalmente backgrounds.

O resultado é um jogo com cara de infância nos anos 90, mas naturalmente com maiores níveis de detalhe por termos melhores ferramentas atualmente. Com isso temos uma boa variedade de personagens e monstros, além do design dos Sky Armors que são muito bem feitos, permitindo até mesmo alterar o esquema de cores deles.

Os efeitos visuais das habilidades também são bem caprichados, contando inclusive com efeitos únicos para as habilidades especiais de cada personagem. Os bosses também tem estilos artísticos bem variados, indo desde humanos, feras até seres divinos com aparência surreal. Be not afraid.

A trilha sonora foi composta por Eddie Marianukroh e é inspirado nos clássicos dos anos 90. É possível notas influências de Yasunori Mitsuda, Nobuo Uematsu e outros compositores de JRPG’s.

Há uma variedade de músicas que se incorporam no jogo e transmitem as emoções necessárias para cada momento dele. Músicas mais agitadas para combates, utilização de instrumentos de orquestra como violinos, violoncelos e até mesmo vocais. São composições de alta qualidade e que felizmente estão disponíveis de forma separada, pelo menos na Steam.

A arte do jogo, tanto seus visuais quanto sua trilha sonora, certamente vão ter um grande apelo para veteranos do RPG, que se surpreenderão com a complexidade de seus sistemas modernos. Por outro lado, o jogo demonstra que uma pixel art bem feita segue sendo um estilo artístico que envelhece muito bem.

Uma obra-prima dos RPG retrô modernos

Ok, eu nem sei se esse termo existe, mas por hora vamos fingir que sim. O que importa é que Chained Echoes me surpreendeu profundamente e é, pra mim, um dos grandes lançamentos do ano. É também um RPG obrigatório para os fãs do gênero.

Digno de um grande clássico da era de ouro dos RPG’s, Chained Echoes prova que o estilo está mais vivo do que nunca. Não devendo em nada para os lançamentos de grandes publishers, impressiona mais ainda o fato de o jogo ter sido feito quase que inteiramente por uma única pessoa.

A forma com que ele mescla o tradicional com o moderno é brilhante, sendo uma aula de game design e de como inovar em um gênero que já está há tanto tempo na indústria e que as vezes parece que não tem mais para onde evoluir.

O diretor Matthias Lindas não esconde suas inspirações, muito pelo contrário, espalha diversas referências de jogos clássicos em Chained Echoes, como você deve ter notado pelo nome de Glenn e Lenne, mas entrega um jogo que se sustenta por si só de forma incrível. Eu não posso deixar de recomendar esse jogo sempre que possível.

Nome do jogo:

Chained Echoes

Publisher:

Deck13

Desenvolvedora:

Matthias Linda

Plataformas Disponívies:

PC, Playstation 4, Xbox One, Nintendo Switch

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge