Crítica: Decarnation e os horrores da misoginia

Escrito por Arthur Tayt-Sohn
Crítica

Ambientado em uma época de mudanças sociais na França, na virada da década de 80 para a 90, Decarnation se inspira também em clássicos cult como Perfect Blue, de Satoshi Kon, e Cidade dos Sonhos, de David Lynch.

O estúdio Atelier QDB conta uma história de terror que mescla os horrores literais do mundo físico e os metafísicos do subconsciente, onde a protagonista Gloria deve enfrentar seus maiores medos para conseguir se salvar.

Tivemos a oportunidade de receber o jogo e contamos agora um pouco do terror de Decarnation.

Chegando ao limite

Em Decarnation, acompanhamos a trajetória de Gloria, uma dançarina do cabaré Cisne Negro. Durante 10 anos ela foi a principal estrela do lugar. Chegando aos seus 30 anos de idade, Gloria precisa lidar com a pressão social de ser uma mulher ainda sem marido e filhos, bem como sua carreira como dançarina começa a se desgastar.

Além disso ela precisa lidar com o desgaste do seu relacionamento com Joy, uma mulher alguns anos mais jovem e que ainda está na faculdade. Em meio à tanta pressão, Gloria chega ao seu limite emocional e em uma tentativa de se reerguer, aceita trabalhar em um novo projeto de um grande mecenas das artes.

A partir daí Gloria começa a lutar pela sua sobrevivência e pela sua sanidade mental.

Explorando os sonhos de Gloria

Decarnation é um jogo focado em narrativa com uma abordagem mais linear. Segundo o diretor Quentin De Beukelaer, essa abordagem permite focar mais na narrativa que eles querem contar, limitando as escolhas do jogador.

O jogo intercala a maior parte dele nessa exploração linear, contando também com momentos em que você vê a narrativa se desenrolando por meio de diálogos e cenas. Há também alguns quebra-cabeças que você precisa resolver.

Mecanicamente ele é bastante simples e acessível. Você irá basicamente caminhar e resolver esses quebra-cabeças, que envolvem jogo de memória, xadrez, coletar itens em uma ordem correta, etc.

Decarnation apresenta quase nenhuma atividade, sendo realmente um jogo focado em apresentar a narrativa para o jogador. É possível inclusive jogar utilizando o teclado sem problemas, não exigindo ações que obriguem a utilização do controle.

Além dos quebra-cabeças existem alguns mini games que você precisa jogar para avançar, todos também muito simples, que envolvem correr de inimigos, participar de sessões de dança onde você deve apertar os botões no ritmo, pular plataformas de madeira e outros.

Todas as mecânicas funcionam muito bem dentro da proposta do jogo. Não tive problemas em entender e executar o que precisa ser feito, seja em questão de dificuldade ou seja por problemas no design das mecânicas ou bugs.

Os verdadeiros monstros são as pessoas

Como aprendemos desde cedo assistindo Scooby-Doo, os piores monstros que encontramos em Decarnation são pessoas reais. Apesar de boa parte do jogo se passar nos pesadelos de Gloria, boa parte dos horrores que ela enfrenta são reais.

Um dos piores desses horrores que Gloria enfrenta diariamente é a misoginia. Desde o início do jogo, observamos como ela lida com isso. Logo de cara vemos o artista que está produzindo uma escultura de Gloria nua comentando sem cerimônias como ele sente nojo de uma ex-modelo sua, agora já envelhecida.

Logo em seguida ela observa um homem alisando da maneira mais nojenta possível a sua escultura. Gloria também precisa lidar com a pressão social de não ter uma carreira sólida e nem ter formado família ainda, enquanto sua carreira como dançarina parece estar se aproximando do “prazo de validade”.

Não demora muito para que Gloria se veja presa em uma armadilha e precise se libertar tanto fisicamente quanto mentalmente. O jogo trabalha com duas camadas de terror: as mais literais, dentro de uma prisão real, e as do subconsciente, onde a protagonista deve lidar com seus próprios demônios interiores.

Essa proposta me deu a impressão de mostrar como as experiências reais de Gloria afetam a dançarina internamente e como a própria mente dela ressignifica algumas de suas experiências, as vezes como uma forma de autodefesa e as vezes tornando essas experiências até mesmo piores.

O que é interessante na história de Decarnation é como ele utiliza como horror situações bastante críveis, mas ao mesmo tendo permitindo também uma abstração para encontrar situações simbólicas na história.

Vou tentar discutir sem dar spoilers, mas vemos cenas no jogo que a princípio parecem absurdas, mas que possuem aquelas camadas de realismo. A prisão física onde Gloria se encontra, por exemplo, conta com algumas situações e diálogos que podemos identificar em relacionamentos abusivos.

Digo que essas situações “parecem absurdas” porque existem casos em que mulheres são vítimas de situações muito semelhantes. Nos diálogos identificamos aqueles casos de manipulações onde mulheres chegaram a considerar que de fato merecem estar naquela situação, ou que isso é o melhor para elas.

Decarnation conta com esses momentos onde um jogo de terror explora situações a princípio inconcebíveis, mas que, parando para refletir um pouco, pensamos “onde foi que já vi ou ouvi coisa parecida?”. E dessa forma o jogo trabalha o seu horror explorando essas situações que podem estar acontecendo ao nosso lado sem nem ao mesmo notarmos.

A misoginia explorada no jogo é daquelas que a princípio se apresenta com afeto, manipula sua vítima e caso o agressor não consiga o que quer, rapidamente adquire traços violentos. Um outro traço também muito interessante é como essa misoginia se torna recreativa.

Novamente tentando dar o mínimo de spoilers possíveis, em um determinado momento do jogo descobrimos como esses abusos de certa forma atraem outras pessoas como uma forma de recreação, expandindo esse problema de um único indivíduo para um problema social.

Já o horror mais metafísico se passa dentro dos sonhos de Gloria, que na verdade são mais pesadelos, onde ela precisa lidar com versões distorcidas dela e da cidade de Paris, com ambientes e monstros inspirados em obras de terror, com inclusive alguns toques de Junji Ito, que tem esse traço de misturar questões psicológicas e sociais em monstruosidades.

O jogador deve explorar o subconsciente de Gloria, conhecendo um pouco mais da personagem e também descobrindo como todos esses fatores levaram a dançarina a um quase colapso mental total.

Mas nem tudo que encontramos nesses sonhos são monstruosidades. Gloria contará com algumas figuras amigáveis que irão a ajudar a superar seus traumas e medos e encontrar sua intuição perdida, para que ela consiga escapar tanto da prisão física quanto da prisão mental. De certa maneira Decarnation é também um jogo sobre esperança.

Dessa forma o jogo alterna entre a realidade e a ficção em que Gloria vive. Em determinados momentos não conseguimos distinguir inicialmente se estamos observando a protagonista no mundo real ou em seus sonhos, passando uma ideia de confusão mental também ao jogador.

Enquanto Decarnation trabalha muito bem a parte de horror dos sonhos de Gloria, as partes que ocorrem no mundo real se destacam por não trazerem monstros ou ambientes assustadores, mas explorando um horror mais crível e que não deixa de trazer questões ainda atuais, já que muitas mulheres ainda passam por situações de abuso.

É claro que sempre haverá uma limitação para homens entenderem o impacto dessas questões, tanto do lado de quem produz o jogo, já que pelo que pesquisei os principais desenvolvedores são homens, quanto pelo lado de nós que consumimos ou analisamos o jogo de forma crítica.

É preciso um pouco mais de esforço para identificar que naquela situação a princípio absurda, existe uma dose de situações cotidianas na vida de muitas mulheres, como manipulação, controle sobre o corpo e sobre liberdade, etc.

Apesar disso, acho que Decarnation expôs isso de uma forma até bem clara, utilizando de simbologia, mas também trazendo uma dose de realidade quando ela fosse necessária. E o jogo se passando na virada dos anos 80 para a década de 90, reforça como alguns tópicos ainda são bem atuais.

Música francesa e arte japonesa

Decarnation passeia entre suas diversas inspirações, que vão das mais óbvias como as obras de Satoshi Kon e Junji Ito até o cinema de David Lynch. A pixel art do jogo brinca com ambientes surrealistas e distorcidos e criaturas grotescas.

Além de bonita, a pixel art ajuda a ambientar o jogador dentro do universo do jogo. Alguns ambientes são claramente mais ameaçadores só de olhar para a composição do cenário. Outros passam uma sensação maior de segurança.

As artes são bastante detalhadas e optam por ambientes mais claros e até mesmo coloridos. Enquanto alguns jogos de horror optam pela utilização de ambientes mais escuros, até mesmo para favorecer jump scares, os ambientes de Decarnation são mais visíveis e o terror nas artes de reflete em ambientes com um grau de gore e também com ilusões.

Gostei também da representação da Paris do final dos anos 80, com ambientes urbanos bem detalhados e mostrando um pouco da estética da época.

A trilha sonora conta com a participação de Akira Yamaoka, que trabalhou em trilhas sonoras de Silent Hill, bem como o grupo pop Fleur et bleue. As composições contam com canções inspiradas no pop da virada dessa década e também com músicas de cabaré.

Apesar de se tratar de um jogo de horror, Decarnation tem uma trilha sonora bastante animada e gostosa de ouvir, que contrasta um pouco com a temática do jogo. É até interessante como essa combinação acaba funcionando bem.

O estúdio Atelier QDB é mais um daqueles casos que apresenta uma proposta com um estilo de arte mais retrô, como a pixel art, e mescla com elementos mais modernos, com músicas em alta definição.

Sempre existe aquela desconfiança sobre jogos de terror feitos em pixel art, visto que a popularidade do gênero explodiu na geração 32 bits dos consoles, que apresentava gráficos mais realistas, pelo menos para a época.

No caso de jogos que se inspiram em animes e mangás, acho que pixel art funciona muito bem ainda. Além disso, jogos como Decarnation tem um foco em narrativa, que acaba sendo tão importante ou até mais que a parte gráfica.

O importante é que o jogo entende bem suas referências e aplica bem suas influências no jogo, com uma pixel art bastante agradável e bem construída.

Os horrores da misoginia

Decarnation entrega um jogo que apresenta inicialmente uma proposta mais voltada para o surreal, mas que no fim das contas também se destaca ao apresentar um terror infelizmente muito crível no dia a dia de muitas mulheres.

Mesmo explorando muito bem suas inspirações de terror, explorados na mente de Gloria, o jogo também mostra como os monstros de verdade são as pessoas. E que mesmo aquele seu vizinho gentil e que talvez até goste de ler para crianças, pode ser uma pessoa horrível.

Por mais que o jogo não chegue a dar sustos, e digo isso com propriedade por ser um legítimo medroso, ele mostra um horror tão aterrorizante quanto o sobrenatural e algumas vezes muito mais próximos de nós.

Nome do jogo:

Decarnation

Publisher:

Shiro Unlimited, East2West Games

Desenvolvedora:

Atelier QDB

Plataformas Disponívies:

PC

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge