Crítica: FANTASIAN Neo Dimension – Fantasia Além da Nostalgia

Por Matheus Megazao

Nota: 9

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge

O gênero RPG deu origem a tantos tipos diferentes de subgêneros ao longo dos anos, que dizer que você gosta de RPGs é parecido com dizer que você gosta de videogames: você precisa ser mais específico. Isso ocorreu em grande parte pelo tanto que jogos experimentaram com misturas de ideias e mecânicas em cima do que temos como os RPGs “tradicionais”, e é uma das razões pelas quais esse gênero se mantém relevante até hoje. Porém, por mais que haja tanta inovação nesse meio, ela ocorre de forma mais linear – onde temos uma definição mais clara do que são RPGs retrôs e modernos.

Sendo assim, enquanto até temos jogos que se veem confortáveis seguindo o estilo mais tradicional que deu origem ao gênero, não consigo pensar em muitos exemplos que buscam inovar partindo desse ponto inicial. Isso é só uma das coisas que me impressionam sobre FANTASIAN Neo Dimension, um jogo que parece querer renovar RPGs a partir do molde de seus primeiros grandes sucessos – mais de 40 anos atrás – e que prova que ainda existe muito espaço para o gênero crescer.

Realidade fantástica

FANTASIAN é um RPG aos moldes clássicos com duas figuras ilustres da série Final Fantasy em seu desenvolvimento: Hironobui Sakaguchi (diretor dos primeiros cinco jogos) e Nobuo Uematsu (compositor mais frequente da série). Além de seu pedigree, o jogo se destaca por dois grandes diferenciais: seus visuais e sua estrutura. Os visuais do jogo são, provavelmente, a parte que mais ajuda a “vendê-lo” para novos jogadores, pois são fotos estáticas de dioramas inteiramente feitos à mão. Além da beleza superficial presente nos mais de 150 cenários incrivelmente detalhados, eles trazem um significado ainda maior: o esmero humano.

Eu já escrevi um texto só sobre isso recentemente, mas, de forma resumida, todo o cuidado colocado na produção dos dioramas é fruto da ideia de adicionar um “toque humano” ao jogo, trazendo-o mais próximo de nossa realidade, ao mesmo tempo que evoca tempos em que videogames eram mais que uma corrida para ver quem tem reflexos mais realistas. O uso desses dioramas torna todo cenário do jogo, sem exceção, um deleite de admirar – ao mesmo tempo que evoca a fantasia de brincar de boneco quando criança. Isso é, no fim das contas, uma forma muito sagaz de construir em cima dos cenários pré-renderizados tão comuns no PlayStation 1.

O uso desses cenários só não é perfeito pois a movimentação dos personagens entre eles é pouco intuitiva. Você tem liberdade de movimento para todos os lados, mas quando o cenário troca – e o ângulo da câmera muda – o esquema de controle de direção do seu personagem continua sendo o da tela anterior até você soltar completamente uma alavanca. Na prática, isso significa que, por exemplo: se você está em um cenário em que para seguir um caminho você segura a alavanca para baixo, quando a câmera troca para um ângulo em que esse caminho agora é para a direita, você vai continuar seguindo o caminho enquanto mantiver para baixo. Em compensação, se por instinto você puxar a alavanca para direita sem antes soltá-la, seu personagem vai se mover para cima na tela. É um detalhe que exige uma certa adaptação, e que parece que já foi resolvido de formas mais inteligentes no passado.

As duas metades de um todo

O lançamento original de FANTASIAN no Apple Arcade foi feito em duas partes: a primeira metade do jogo foi disponibilizada no lançamento, com a segunda chegando alguns meses depois. Além de um lançamento como esse ter dado tempo do time de desenvolvimento trabalhar mais na segunda parte, também serviu para reforçar que o jogo funciona de formas definitivamente diferentes em ambas as partes. Mesmo sem te dizer onde acontecia essa separação no jogo original, fica muito claro pra quem jogar a versão Neo Dimension. Isso porque a primeira metade funciona como um RPG mais simples, com uma progressão bem linear nas missões e na forma que você encontra personagens para seu grupo; enquanto a segunda parte abre completamente o mundo para você seguir o caminho que quiser, podendo escolher livremente a ordem que pretende visitar lugares de interesse. De certa forma, essa divisão me lembra muito da estrutura de dois Final Fantasy em particular. A primeira metade tem um tom muito parecido com o IX, um jogo mais linear que te apresenta um mundo fantástico com uma história mais básica, enquanto a segunda metade lembra a também segunda metade do VI, onde seu objetivo final é estabelecido logo de cara e você explora o mundo em busca de força e aliados para chegar lá.

Essa separação tão clara torna a progressão certamente muito interessante, mas vem com o custo de poder desagradar muitos jogadores. Quem se engajou com estilo mais simples e direto da primeira parte pode perder o interesse na segunda, enquanto quem gostaria da liberdade da segunda parte pode não chegar nela por achar a primeira entediante. Isso é só mais um caso em que os desenvolvedores tomaram decisões que parecem unicamente servir o propósito de sua visão para o jogo, independente das consequências mercadológicas, e eu respeito muito isso.

Reinventando a roda

Para falar mais sobre a estrutura de progressão do jogo, é necessário discutir o aspecto mais interessante de FANTASIAN: seu combate. O jogo se introduz como um RPG de turnos básico, com um ataque básico e a possibilidade de utilizar habilidades em meio à batalha. Porém logo fica claro que existe um elemento de posicionamento de inimigos e ataques, onde você precisa mirar suas habilidades de forma que acerte um inimigo específico ou, em caso daquelas que atravessam seus oponentes, uma linha com o maior número deles possível. A partir daí o jogo começa a adicionar mais camadas ao combate. Primeiro introduzem ataques que podem fazer curvas para atingir a parte de trás da formação do inimigo, depois alguns chefes que exigem timing correto, baseado em suas animações, para atacá-los. Por fim, começa a segunda parte.

Na segunda metade, quando você já tem umas 15 horas de jogo e acha que domina o combate de FANTASIAN, é onde o jogo abre. Você ganha acesso a árvores de habilidades para seus personagens, e será obrigado a usá-las com sabedoria nos chefes a seguir. Isso porque é aqui que o jogo tira as rodinhas da bicicleta e os chefes viram verdadeiros testes de habilidade e paciência, onde você passa muito mais a precisar levar em consideração resistências elementais, buffs e debuffs, e a composição do seu grupo para essas lutas. Já os chefes passam a utilizar diferentes gimmicks que são algumas das mais criativas que já vi em RPG de turnos. É difícil falar delas sem spoilers, então vou me permitir dar um único exemplo sem muito contexto: tem um chefe muito forte que te faz perguntas constantemente durante a luta, sempre com duas opções de resposta. Dependendo da resposta que você escolhe, ele usa um ataque diferente. Às vezes ele te oferece dois ataques elementais, dois debuffs, ou até duas opções em que uma vai te beneficiar e outra te prejudicar. É uma luta bem difícil, mas que você dita o ritmo – o que te permite vir preparado com as resistências corretas, se você for esperto.

Eu não posso enfatizar o suficiente o quanto os chefes dessa segunda metade são criativos e desafiadores. É bem surpreendente, inclusive, que eles continuam tão difíceis mesmo com a dificuldade reduzida introduzida na versão Neo Dimension, o que pra mim só prova ainda mais a sagacidade de seus designs.

Um último ponto que solidifica como esse jogo é competente em renovar mecânicas já consolidadas é o Dimengeon – que apesar do nome tosco, é uma mecânica incrivelmente útil. Ele é um aparelho no mundo do jogo que permite que você mande quaisquer criaturas dos encontros aleatórios pelo mapa para uma dimensão alternativa, onde você pode lutar com todos de uma vez eventualmente. O aparelho começa com um limite expansível de 30 monstros, e você pode “entrar” nele a qualquer momento antes que ele encha – ocasião na qual você será obrigado a enfrentar todos os monstros. Para tornar a luta contra tantos inimigos mais justa e eficaz, a cada turno aparecem cristais que podem aumentar seu ataque ou te dar um turno a mais, contanto que você acerte ataques neles além dos monstros. Com isso, além de você não ser constantemente interrompido por lutas nos mapas, você pode acelerar as mesmas no Dimengeon e se beneficiar de toda a experiência e os itens deixados pelos monstros.

Uma longa história

Muito falei aqui até agora sobre as maravilhas mecânicas de FANTASIAN Neo Dimension, mas ainda não mencionei a história – que, curiosamente, é o aspecto que eu mais valorizo em jogos. A verdade é que a história do jogo é apenas competente comparado ao resto que ele faz tão bem. A narrativa definitivamente não é ruim, só não se destaca tanto em relação a todo o resto e faz uso de muitos clichês que RPGs mais antigos faziam. Apesar disso, ela tem seus momentos, principalmente quando se trata dos personagens que você encontra pela aventura. A maioria deles possui passados e histórias que você já viu por aí, mas elas são contadas de forma bem competente e dão origem a uma seleção muito colorida de companheiros.

Talvez o personagem mais peculiar seja o protagonista, Leo. Ele começa o jogo com amnésia, que é um dos clichês que eu menos gosto em narrativas, mas tem isso usado de forma surpreendentemente capaz. A amnésia dele inicialmente serve como uma forma de apresentar aquele mundo tão peculiar ao jogador de forma que o protagonista esteja no mesmo nível. Com o passar da história, porém, Leo vai rapidamente recuperando sua memória aos poucos de forma que sirva o propósito da narrativa, o que o torna um personagem mais interessante sem precisarmos jogar um jogo inteiro pra isso. É engraçado como até na hora de usar um clichê tão batido de RPGs o jogo consegue adaptá-lo para algo melhor.

Nova dimensão

Além do acesso a um jogo preso em uma plataforma risível, o relançamento de FANTASIAN trouxe consigo algumas peculiaridades inerentes à sua versão original. A primeira delas são os menus do jogo, que por diversas vezes me lembraram que isso costumava ser um jogo mobile. Ele também podia ser jogado com controle e em TVs, mas seus menus são excessivamente feitos para toque e podem causar certa estranheza. Além disso, mesmo com suporte a resolução 4k, alguns cenários ficam meio borrados em cenas mais próximas dos personagens. Isso não é tão comum pois eles foram espertos com os ângulos das cutscenes, mas ocasionalmente é notável.

Ainda assim, esses defeitos só se destacam porque FANTASIAN Neo Dimension é impecável em todo o resto. O DNA de jogos do passado está visivelmente presente nele, principalmente nas mecânicas mais inovadoras. Sua criação se beneficia do passado de seus criadores e do seu gênero, mas acima de tudo mostra que ainda há espaço para continuar inovando um meio tão explorado. É um jogo feito com paixão tanto pela arte de criar, quanto por jogos de RPG em geral – ambos aspectos imutavelmente humanos. Além de “um sucessor de Final Fantasy pelos criadores de Final Fantasy”, FANTASIAN é uma obra mais do que capaz de caminhar com suas próprias pernas.

Nome do jogo:

FANTASIAN Neo Dimension

Publisher:

Square Enix

Desenvolvedora:

Mistwalker

Plataformas Disponíveis:

PC, Playstation 4, Playstation 5, Xbox Series S|X, Nintendo Switch, Mobile

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