Crítica: ghostpia Season One – Uma utopia para fantasmas. Uma história sobre a vida.

Escrito por Arthur Tayt-Sohn
Crítica

O Japão é indiscutivelmente um dos maiores produtores de videogames já há algumas décadas. Enquanto alguns dos maiores estúdios do país conquistam milhões de fãs e faturam verdadeiras fortunas, sempre me perguntei: onde estão os jogos indie japoneses?

Movido pela curiosidade, comecei a procurar alguns jogos e um dos que me chamou atenção foi ghostpia, do estúdio Chosuido. Tivemos a oportunidade de receber o jogo para essa análise e você pode conferir aqui e conhecer um pouco do que os desenvolvedores indie japoneses estão produzindo.

Uma utopia para fantasmas

Mas o que é ghostpia exatamente? Bom, o jogo é uma visual novel que utiliza o estilo artístico conhecido como Denshi. Esse estilo é conhecido por utilizar efeitos “elétricos” ou “digitais” em sua arte. Por isso temos essa distinta estética com alguns glitches visuais, como em velhos vídeos em VHS.

A história se passa na cidade que recebe o mesmo nome do jogo. Você irá acompanhar a história de Sayoko, um dos “fantasmas” que moram nessa cidade. Na verdade, nem mesmo os moradores sabem o que eles são, se auto denominando fantasmas devido a sua incapacidade de morrer.

Imagem com a cidade de ghostpia

Sayoko é um caso especial entre eles. Ela é a única moradora da cidade que acha que algo de muito errado está acontecendo nesse local e sente que ela não pertence ali. Com um forte sentimento de nostalgia e saudade de sua suposta cidade natal, Sayoko sonha em se lembrar de onde ela realmente veio e um dia retornar para casa.

É importante destacar uma característica de ghostpia. Essa é uma visual novel totalmente linear, sem escolhas a serem feitas. Você irá basicamente ler e assistir os acontecimentos que se desenrolam na história. Os únicos comandos necessários no jogo são avançar os diálogos. Você também pode pausar, retornar alguns momentos e salvar a qualquer momento.

O jogo é dividido em cinco capítulos, cada um desenvolvendo além da história de Sayoko, arcos secundários que envolvem outros personagens. Os principais deles são as amigas de Sayoko: Anya, Pacifica e Yoru. Cada uma delas tem personalidades bem distintas, mas todos tem em comum um forte sentimento de amizade por Sayoko.

Essa não é a minha primeira experiência com visual novels, mas também não é um gênero que eu costumo jogar com frequência. ghostpia me chamou atenção pela sua estética que se distingue bastante de outros jogos do gênero. Mas além disso, o jogo me cativou de vez pela sua narrativa, algo que é fundamental em jogos do gênero.

A história do jogo se desenrola principalmente em torno de Sayoko lidando com diversas questões pessoais, como sua solidão e seu sentimento de não pertencimento. Esse sentimento a leva a ter uma fixação em conseguir sair da cidade, que é cercada por um deserto de neve que se acredita não ter fim.

Imagem das personagens Sayoko, Anya, Pacifica e Yoru de ghostpia

Essa cidade tem exatamente 1024 moradores e tem a aparência de uma típica cidadezinha interiorana, com o detalhe de estar eternamente coberta de neve. Ao centro da cidade, repousa um misterioso míssil que falhou em explodir. Mais misterioso ainda é o fato desse míssil ter inscrito em sua lataria os nomes dos 1024 moradores.

Outro grande mistério do jogo é o fato de os fantasmas sempre retornarem à vida caso morram. Eles retornam ao lixão da cidade, local que não é exatamente um lixão, mas um depósito para onde vão todas as coisas da cidade que são “esquecidas” pelos fantasmas, além de ser o destino onde os mortos renascem.

As coisas ficam ainda mais estranhas quando de repente se tem notícia de uma nova moradora na cidade. Yoru, que seria a moradora número 1025, inicialmente é mantida sob custódia da Igreja, uma instituição que além de religiosa tem braços políticos, comerciais e militares pela cidade.

Sem dar mais detalhes sobre a história do jogo, a narrativa se desenvolve em torno de Sayoko e suas amigas, principalmente. São abordados temas como amizade, confiança, nostalgia, medo da morte, ter propósitos na vida, entre outros temas, indo de alguns mais amplos até outros mais introspectivos.

Também existem trechos com bastante foco nas questões pessoais de Sayoko, como sua dificuldade de se relacionar com as pessoas e também misteriosos flashbacks que parecem ser de uma vida passada, ou de uma época em que ela estava viva.

A narrativa em si é bastante leve, mesmo lidando com temas mais sensíveis. Um ponto que me chamou bastante atenção é a imprevisibilidade do roteiro. Em uma determinada cena, um personagem em seu leito de morte revela o medo de estar morrendo, por mais que os fantasmas saibam que sempre irão retornar.

Personagem Yoru de ghostpia vestida de psicóloga

Logo após esse diálogo sensível, se segue uma cena extremamente cômica, gerando uma quebra de expectativa. E risadas, claro. Foram diversas vezes que o jogo me tirou algumas risadas, ao mesmo tempo que me levava a reflexões.

O jogo tem uma história muito inspirada em animes e mangás slice of life, um gênero que gosto bastante e que costuma ter um ritmo um pouco mais lento. Ele mescla com isso, além da comédia, utilizando também bastante violência cômica, com cenas de violência realmente explícitas, um cenário de realismo fantástico.

O cenário do jogo é uma típica cidade pequena, com moradores aparentemente imortais, mas que passam muita familiaridade por conta dos acontecimentos cotidianos que acontecem. É um tipo de narrativa que tem algumas “regras” que conhecemos, mesclando com uma parte mais fantasiosa que vamos descobrindo aos poucos.

E como o jogo é todo narrado pela Sayoko, muitas dessas “regras” vamos descobrindo conforme ela mesma vai entendendo mais sobre a cidade, mesmo que muitos mistérios ainda não tenham sido revelados.

Achei a narrativa muito envolvente por ela passar essa familiaridade, que nos faz esquecer que o mundo do jogo tem suas próprias regras. As vezes nos esquecemos disso e somos surpreendidos com os elementos fantasiosos de ghostpia.

Personagens Sayoko, Yoru e Clara comendo

Além disso, as quebras de expectativas e mudanças no tom da história, ajudam a não tornar o ritmo dela cansativo. Mesmo com as mais de oito horas de jogo, ele segura bem o ritmo da narrativa.

Outra grande sacada de ghostpia é como ele aproveita a mídia dos videogames para enriquecer a forma de contar a história. O jogo emula um típico desenho infantil, com abertura, jingles de intervalo e até mesmo um encerramento com créditos, ao final de cada capítulo.

Ao mesmo tempo, ele é uma visual novel que você pode ler com toda tranquilidade e no seu ritmo. Mas essa visual novel utiliza diversos recursos visuais muito interessantes, para que você não simplesmente se sinta como se tivesse lendo um mangá numa tela digital.

Aliado a isso, o jogo tem ótimos efeitos sonoros e uma trilha sonora que acrescentam mais ainda na narrativa, além de ditar o tom das cenas que estão passando atualmente. Todos os recursos do jogo são pensados para beneficiar a narrativa. O principal objetivo dos desenvolvedores é contar uma boa história.

Pessoalmente eu gostei bastante da história, até por ser de um gênero que eu normalmente gosto. Eu admiro bastante quando uma história consegue me prender com uma narrativa que aborda em boa parte do tempo temas cotidianos.

Mesmo que ghostpia tenha seus momentos de grandes reviravoltas, uma parte considerável do jogo se desenvolve no dia a dia das personagens. Como por exemplo, quando Sayoko e Yoru procuram emprego.

Imagem das personagens Sayoko e Yoru de ghostpia em uma entrevista de emprego

As discussões introspectivas dos personagens e seus próprios questionamentos também são bastante interessantes. Utilizar fantasmas para levantar questões como propósito na vida ou o medo da morte, utilizando também momentos cômicos, é uma forma de abordar temas mais sensíveis de forma não tão pesada.

Aliado a isso, a apresentação visual usando uma arte de livros infantis, fugindo bastante do padrão japonês de utilizar arte de mangá, com os efeitos visuais de VHS e TV analógicas, cria uma sensação de nostalgia. Algo que é especialmente sentido por quem viveu a infância nos anos 90.

Encerramento do capítulo de ghostpia

Todos os momentos em que eram exibidos os encerramentos me lembraram automaticamente da época em que eu assistia animes no extinto canal Locomotion, passando um pouco a sensação de saudade que Sayoko sente no decorrer da história.

O que ghostpia faz é contar sua ótima história se aproveitando de todos os recursos visuais e sonoros que videogames podem oferecer, o que demonstra mais um potencial que a mídia possui: entregar uma grande experiência até mesmo apertando apenas um único botão.

Além de tudo, vale destacar novamente como a arte e as animações de ghostpia são lindas. A combinação da estética de desenho infantil com o estilo Denshi combinou perfeitamente. O jogo usa bastante cores em tons pasteis que também dão uma cara de livro infantil para ele.

Imagem das personagens de ghostpia com boca humana

E em alguns momentos o jogo foge totalmente dessa estética e traz elementos de outras mídias, como mangás, quadrinhos em preto e branco e animações 3D. Tudo combinado em perfeita harmonia.

Continua…

Essa edição de ghostpia é apenas a primeira temporada da história. O estúdio Chosuido segue trabalhando na história e o final do jogo até deixa um teaser bastante misterioso.

A primeira temporada conseguiu me surpreender bastante. O jogo me chamou atenção pela sua estética e acabou me cativando mais ainda com seus personagens carismáticos, humor absurdo e diálogos introspectivos.

Final de ghostpia Season One

E como apreciador de jogos indie, fico bastante satisfeito em ver esse tipo de jogo desenvolvido dos japoneses, fugindo dos modelos dos grandes estúdios. Por mais que eu seja fã dos jogos produzidos por esses estúdios, também quero conhecer mais das histórias que os pequenos estúdios e desenvolvedores tem pra contar.

ghostpia foi uma grata surpresa e estou ansioso pela segunda temporada. Descobrir o que há além dos sonhos, se há um lar para voltar…

Nome do jogo:

ghostpia Season One

Publisher:

room6, yokaze

Desenvolvedora:

Chosuido, 超水道

Plataformas Disponívies:

PC

Nota: 10

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge