Crítica: Have a Nice Death – Trabalhe enquanto eles morrem

Escrito por Arthur Tayt-Sohn
Crítica

Em acesso antecipado desde março de 2022, Have a Nice Death chega em sua versão final. Desenvolvido pela Magic Design Studios e publicado pela Gearbox Publishing, o jogo é um roguelike que mescla combates rápidos e desafiadores, com uma arte marcante e um humor ácido.

Confira agora minhas impressões sobre o jogo.

Bem-vindo à Death Inc.

Ao iniciarmos o jogo, somos primeiramente apresentados à uma tela de aviso sobre os temas tratados em Have a Nice Death. Apesar de eu não ter identificado nada que possa causar um grave incômodo, é importante que sejam exibidos avisos como esse que lidam com temas sensíveis, mesmo que de forma bem humorada.

Após iniciarmos de fato o jogo, conhecemos a Death Inc., a corporação responsável recepcionar e encaminhar os mortos para o pós vida. A diretoria da corporação é a própria Morte, que se vê abarrotada de trabalho por conta de uma entrada incomum de mortos na Death Inc.

Logo descobrimos que os Tormentos, responsáveis pelos diversos departamentos da corporação, se rebelaram e desequilibraram o fluxo de entrada dos mortos. Agora Morte deve abandonar seu trabalho burocrático e mais uma vez vestir sua Capa e sua Foice para enfrentar os Tormentos.

Você colhe o que você planta

De posse de sua Foice, a Morte deve atravessar diversos departamentos, vencendo os Tormentos pelo caminho e trazer a Death Inc. de volta à normalidade. Cada departamento é dividido por diversos andares gerados de forma aleatória, como é padrão em roguelikes.

Essa estrutura se assemelha bastante com Hades. Nos departamentos você irá passar pelos andares e escolher diversos caminhos a seguir. Cada seção possui inimigos e uma recompensa de acordo com o tipo de seção.

É possível encontrar seções com equipamentos, itens de cura, cofres e também outros com desafios ou surpresas aleatórias. Também existem subchefes opcionais, lojas e NPCs que vão te ajudar fortalecendo seu personagem.

Ao final de cada departamento você irá enfrentar um dos Tormentos, normalmente ligados com o mau que eles causam no mundo dos vivos e que levam os humanos à morte. Temos departamentos como Alimentos Tóxicos, ligados com a má alimentação, Guerras Modernas, Doenças Físicas, Dependências e Vícios e outros.

Cada departamento possui características próprias, com sua estética e inimigos relacionados com o tema. Em Doenças Físicas temos por exemplo um inimigo coração que explode em um infarto ao ser derrotado. No departamento de Alimentos Tóxicos temos inimigos feitos de fast food e doces.

Caso você morra no decorrer do jogo, retorna à sala da diretoria e deve recomeçar todo o processo, que será diferente do último. Novamente você começará o jogo somente com sua foice e deve ganhar novos equipamentos e upgrades pelo caminho.

O jogo conta com uma grande variedade de equipamentos. É possível utilizar além da Foice, mais duas armas ou também feitiços. As armas secundárias contam com um tempo de recarga após cada uso e os feitiços consomem Mana, que é preenchida sozinha após algum tempo.

Os upgrades vão desde aumentar a vida máxima até as Maldições, que são divididas em três categorias e podem melhorar seus ataques de Foice, Armas Secundárias e os Feitiços. Alguns upgrades também causam uma penalidade, como tornar determinados inimigos mais fortes ou aumentar o tempo de recarga de suas armas secundárias.

A variedade de armas permite criar combinações bem interessantes. A Foice Retrátil, por exemplo, tem um alcance maior. Ela pode ser usada à distância, trazer o inimigo pra mais perto atordoado e permitir o uso seguro de uma arma secundária que seja forte, mas lenta.

Existem também upgrades que combinam melhor com essa estratégia, como uma Maldição que aumenta o dano do ataque caso você troque de arma no meio de um combo. O que dificulta um pouco na criação de estratégias é o fator roguelike, que faz com que nem sempre você adquira os equipamentos e upgrades que gostaria.

Esse fator, por outro lado, também incentiva que o jogador se adapte o tempo inteiro. Eu gostei bastante que em cada tentativa de subir todos os Departamentos me fizeram experimentar combinações e estratégias totalmente diferentes.

Naturalmente que algumas tentativas foram bastante frustrantes, onde simplesmente nada deu certo pra mim. Outras eu já fui mais feliz e consegui equipamentos e melhorias que facilitaram bastante meu jogo.

É importante destacar também que a jogabilidade de Have a Nice Death é bastante polida. Em um jogo roguelike desse tipo é muito frustrante quando as mecânicas não funcionam bem, o que não acontece aqui. Os comandos são bastante responsivos e você tem total controle dos ataques, pulos e esquiva. O jogo conta até com cancelamento de animação, um recurso utilizado justamente para cancelar um ataque quando você percebe que vai ser muito punido pelo inimigo.

E o jogo é bastante punitivo em alguns aspectos. Sua barra de vida, por exemplo, conta com duas partes. Quando você toma dano você não só perde parte da vida como sua vida máxima diminui. Ou seja, mesmo se curando você não consegue recuperar aquele dano “puro” que recebeu e diminuiu sua vida máxima.

A única forma de recuperar essa vida totalmente é utilizando a Anima Dourada, que realiza uma “cura pura”, restaurando o máximo de vida. Mas como os recursos são relativamente limitados no jogo, isso não é exatamente fácil de conseguir.

Caso você esteja sentindo o jogo muito punitivo nesse aspecto, é possível configurar no escritório da Death Inc. uma run mais “amigável”, que permite que você se cure após vencer os chefes e também garanta algumas facilidades na sua tentativa. Mas caso você também esteja afim de um desafio, posteriormente é possível configurar o jogo para deixa-lo mais difícil ainda.

Have a Nice Death é um jogo que conta com mecânicas já conhecidas de quem curte jogos desse estilo, como Hades, Dead Cells e até mesmo Hollow Knight. Ele não apresenta muitas novidades no gênero, mas suas mecânicas funcionam muito bem, o que é o mais importante. Seu combate é desafiador e divertido, além de bastante diversificado nas possibilidades de builds que você pode fazer. Caso tenha um pouco de sorte também, claro.

Morte e o cinismo no capitalismo tardio

Have a Nice Death é além de um jogo de ação roguelike muito divertido, mais um exemplar de uma tendência na indústria independente de tecer críticas ao modo de vida dentro das corporações.

A utilização de sátiras e humor ácido para representar o cotidiano no capitalismo tardio é algo recorrente. Jogos como Going Under e Say No! More são outros exemplos que utilizam esse recurso narrativo.

O enredo de Have a Nice Death também vai para esse lado, estruturando a pós vida como um grande ambiente corporativo. O roteiro conta com diversos comentários e piadas a respeito desse modo de vida. A própria mensagem ao morrer que diz “Descanse em papelada” revela isso, logo antes do jogador ser jogado novamente para uma mesa cheia de papeis na sala da Diretoria.

Os Tormentos são funcionários como com funções muito bem definidas e que, ao se recusarem a fazer o seu trabalho direito, colocam em risco todo o fluxo de trabalho da empresa.

O jogo tem algumas representações bastante interessantes, como da estagiária super dedicada que não percebe o quanto está se colocando em sua situação de exploração, os funcionários que consomem café excessivamente e até mesmo uma greve de trabalhadores com algumas exigências absurdas.

Tudo é feito de forma bastante satírica e com situações com alto grau de absurdo, mas que para quem já trabalhou em ambientes corporativos é possível identificar algumas situações críveis, respeitando as devidas proporções, naturalmente. Não imagino que existam muitas pessoas trabalhando recepcionando as almas dos mortos, por exemplo.

A própria ideia de trabalho no pós vida já é algo que soa bastante absurdo, para não dizer infernal. E o jogo tem em suas mecânicas algumas ferramentas tipicamente corporativas, como métricas de desempenho que liberam algumas recompensas e facilidades de acordo com o quão bem você se saiu no seu “trabalho” de trazer a Death Inc. à sua normalidade.

E como o próprio jogo avisa no começo, parte dele representa condições de trabalho árduo, o que me parece uma tentativa dos desenvolvedores “fazerem dos limões uma limonada”, colocando situações possivelmente vividas por eles em uma representação artística satírica que de repente traga algum tipo de conforto ou catarse. Talvez uma foice e um martelo te ajudem a resolver alguns dos seus problemas.

Jogar Have a Nice Death como alguém que está inserido no mercado de trabalho corporativo pode até soar irônico, a partir do momento que sabemos como ele funciona. E após algumas horas dessa “catarse gamer”, fechamos o jogo para dormir e acordar cedo no dia seguinte para mais um dia de trabalho, assim como a Morte retorna para sua mesa de Diretora ao ser derrotada.

E parece haver essa tendência de transformar em entretenimento auto irônico a nossa rotina como sociedade, talvez para nos sentirmos melhores pelo menos por um breve momento. E eu sei que estou divagando demais sobre o assunto, mas não é culpa minha se me deram pra review um jogo sobre a Morte estar sobrecarregada de trabalho.

Passado esse momento de introspecção, gostei bastante dos textos do jogo. A história de Have a Nice Death é bastante simples e não se desenvolve muito, mas conta com um humor ácido que eu particularmente gosto bastante, além de personagens bastante carismáticos.

A localização para o português brasileiro tem alguns pequenos erros, mas nada que prejudica a experiência com o jogo. Alguns termos foram traduzidos para o espanhol, por exemplo. Mas nada que não seja facilmente corrigido com alguns patches.

Eu sei que muitos fãs de roguelikes não estão exatamente esperando por uma boa história, apesar de eu achar que Hades faz isso muito bem, mas achei interessante comentar um pouco sobre o roteiro dele já que o próprio jogo te faz parar um pouco e conversar com alguns personagens.

O Estranho Mundo de Death

Os desenvolvedores do jogo nunca esconderam as inspirações em filmes produzidos por Tim Burton na criação de Have a Nice Death, sendo uma das coisas que chama bastante a atenção. A direção de arte do jogo é bastante agradável e bem feita.

Seus tons de cores quase totalmente em preto, branco e cinza ajudam a criar a atmosfera de estamos no submundo. Em alguns departamentos se utilizam mais cores, mas sempre privilegiando tons mais sóbrios.

O jogo não é apenas divertido, mas também conquista pela sua beleza estética e seu tom de “cartoon”, que colaboram com a pegada satírica do jogo. Algo que me lembrou o desenho As Terríveis Aventuras de Billy e Mandy, que eu gosto bastante, mas utilizando menos cores.

Toda a criação dos personagens e departamentos é bastante detalhada e bem feita. Alguns me lembram desenhos mais antigos, como no Departamento de Doenças Físicas e no de Guerras Modernas. Inclusive em alguns pontos se assemelhando com o jogo Cuphead, que utiliza essa mesma inspiração.

Além disso o jogo também conta com muitas animações e efeitos, com uma grande variedade deles nas armas e nas habilidades. Além do aspecto estético que é sempre bem-vindo, também servem como indicadores para o jogador identificar ataques mais poderosos dos inimigos, golpes que não são possíveis de esquivar, etc.

Como o jogo foi lançado em acesso antecipado, é possível observar que novos efeitos e melhorias visuais foram sendo implementados no jogo, o que demonstra um empenho dos desenvolvedores em melhorarem ele visualmente.

Para quem curte desenhos animados com uma estética mais clássica e as animações do Tim Burton, eu acho bastante difícil que não gostem também do Have a Nice Death. Sua direção de arte é bastante característica, bonita e que não deixa o jogo com uma cara de “igual Hollow Knight/Hades/insira outro jogo aqui” apesar de compartilharem algumas coisas em comum.

A Morte nunca dorme

Have a Nice Death é um jogo que foi feito para ser rejogado várias vezes. Sua estrutura roguelike oferece um fator replay. E após diversas atualizações, a Magic Design Studios entrega um jogo que certamente valeu a pena para quem adquiriu em acesso antecipado.

Por outro lado, jogadores que estão conhecendo agora o jogo não irão se sentir perdidos, já que ele é também receptivo para novos fãs. E caso você seja já um fã de jogos de ação roguelike nesse mesmo estilo, se sentirá em casa.

É importante destacar também que muitos jogos desse gênero recebem atualizações por um bom tempo após o lançamento, então sempre há um incentivo para retornar e rejogar. Fora também que Have a Nice Death conta com muitos objetivos secundários, desafios e colecionáveis que vão te manter nele por um bom tempo, principalmente se você curte coletar conquistas.

Have a Nice Death foi uma experiência bastante divertida pra mim, pois combina muitas coisas que eu gosto em um jogo só: estética de cartoons antigos, ação, humor ácido, etc. Possivelmente será meu novo jogo de conforto para eu fazer algumas runs nos meus horários de folga do proletariado. Se alguém tem que trabalhar, que seja a Morte.

Nome do jogo:

Have a Nice Death

Publisher:

Gearbox Publishing

Desenvolvedora:

Magic Design Studios

Plataformas Disponívies:

PC, Nintendo Switch

Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge