Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Jogos narrativos já são consagrados no mercado de games. Esse gênero possui um grande foco em tomada de decisões, desenvolvimento de personagens e por vezes, passar uma mensagem clara para os seus jogadores.
Road 96, da desenvolvedora francesa DigixArt, mistura narrativa com manifesto político. Os desenvolvedores convidam o jogador a se politizarem e tomarem uma atitude frente ao autoritarismo, seja da maneira que acharmos melhor. Mas qual é o real impacto disso? Vamos descobrir enquanto viajamos pela estrada.
Em meados dos anos 90, o fictício país Petria vive um governo autoritário, comandado pelo presidente Tyrak, que endureceu sua repressão após um ataque terrorista ocorrido 10 anos antes.
Às vésperas das eleições presidenciais, o clima político fica cada vez mais conturbado. Acusações de possíveis fraudes eleitorais, protestos, emissoras de TV produzindo fake news e crescente repressão policial ocorrem o tempo inteiro. Em meio a isso tudo, misteriosos desaparecimentos de adolescentes.
Logo no início do jogo sabemos que os desaparecimentos são na verdade jovens petrianos tentando desesperadamente cruzar a fronteira para fugir do país. Os que não têm sucesso na empreitada são mortos ou presos, enviados para os Poços.
E aqui temos um dos diferenciais de Road 96 para grande parte dos jogos narrativos. Ele não possui um protagonista, mas sim vários. Durante cada capítulo do jogo, escolhemos um adolescente sem rosto ou nome, da lista dos desaparecidos que aparecem diariamente no jornal da TV.
Cada um deles começa sua jornada em um ponto diferente da estrada, em datas diferentes e com níveis de energia e montante de dinheiro também únicos para cada um. Isso é um ponto positivo porque evita que usemos informações prévias de outras partidas para ter vantagem no jogo.
Cada capítulo então é a jornada de um adolescente. Seu objetivo é conseguir atravessar a fronteira. Durante o trajeto, você poderá pedir carona, andar de táxi ou ônibus ou simplesmente caminhar, cada um por um custo de energia ou dinheiro.
Você irá parar em pontos específicos do mapa onde irá presenciar alguns eventos e conhecer os personagens secundários da história, que fazem o papel de protagonistas desse jogo. São eles a jovem rebelde Zoe, a policial Fanny, o pequeno gênio Alex, o gentil caminhoneiro John, a repórter Sonya, os ladrões Stan e Mitch e por fim o taxista Jarod.
Cada um desses personagens possui uma motivação e opinião política, sendo que você pode concordar com eles ou não. Cada escolha irá levar a diferentes diálogos e alterar alguns desfechos do jogo.
No total são 3 finais, que podem variar em alguns detalhes de acordo com suas escolhas durante cada capítulo, bem mais limitado que o prometido “jogo procedural”.
Após finalizar o jogo, você pode começar um Novo Jogo+ para pegar todas as outras cenas que faltam, usando dos recursos coletados anteriormente e assim conseguir alguns outros pequenos desfechos adicionais. Mas mesmo assim, ainda de forma limitada e pouco intuitiva.
Digo isso porque não dá pra saber exatamente o que você precisa fazer pra chegar a uma cena com um ou outro personagem, simplesmente porque algumas consequências não tem muita ligação direta com o que você precisa fazer pra ativar eles.
Outra coisa que me incomodou um pouco também foi um desfecho específico, onde eu tomei uma decisão importante sabendo que uma personagem faria algo com um objeto encontrado e parece que os desenvolvedores simplesmente esqueceram da existência desse objeto depois, porque ele teve impacto zero na história.
Mecanicamente ele funciona em primeira pessoa, você pode explorar os locais para encontrar segredos ou falar com os personagens. Durante os diálogos você terá algumas opções que podem mudar a narrativa, fazer um personagem gostar ou não de você e também levar a desfechos diferentes naquele momento.
Durante cada capítulo, você coleta alguns equipamentos ou habilidades que são levados para o capítulo seguinte, com o novo personagem escolhido. Dessa forma, conforme você avança no jogo ele acaba ficando mais fácil e também desbloqueando novas opções de diálogos. Por exemplo, o amuleto da sorte de Sonya pode te ajudar a conseguir dormir de graça em alguns locais.
É um jogo simples de jogar e com a localização em português, nenhum jogador terá dificuldade de entender o que precisa fazer para atravessar a fronteira. O restante fica a cargo das suas decisões e também um pouco de sorte.
Os visuais do jogo não são muita novidade, apesar de competentes. Jogos narrativos não costumam investir muito em realismo, e por vezes escolhem uma abordagem mais cartunizada em sua estética, o que acontece em Road 96 também.
Os cenários e personagens não são muito detalhados, mas são bem feitos de acordo com a escolha artística dos desenvolvedores. Funciona bem e não exige um esforço monumental em realismo.
A trilha sonora é o ponto mais forte do jogo. A escolha do repertório é bem variada e altamente inspirada nos sucessos da década de 90. Incluindo rock, pop, música eletrônica e até uma releitura de um clássico hino político, dá vontade de simplesmente baixar todas as músicas e ficar ouvindo.
E claro que todas elas são adquiridas coletando as icônicas fitas cassetes, espalhadas em walkmans, rádios de carros e alguns lugares mais inusitados. A escolha da trilha foi um grande acerto e se você já passou das três décadas de vida como eu, vai sentir um gostinho de nostalgia.
A grande sacada de Road 96 é ser um manifesto para que a juventude se politize e se oponha a governos autoritários. Durante sua jornada, tomamos diversas decisões que se encaixam em um eixo político diferente.
Podemos ser mais radicais, moderados ou indiferentes. Não existem opções pró-governo Tyrak, o que já se torna uma limitação e também direciona a mensagem que os desenvolvedores querem passar. Existem personagens simpáticos ao governo, mas nem todos são ruins.
O que o jogo tenta fazer é humanizar as pessoas de todos os espectros políticos, apresentando as circunstâncias que levaram cada um deles a ter um certo posicionamento ou opinião. De certa forma é uma maneira de incentivar um diálogo entre pessoas de diferentes opiniões.
Apesar de o jogo não citar especificamente o viés político do governo autoritário, a estética escolhida e alguns subtextos deixam implícito a quem se referem, da mesma forma que conseguem “atingir” outras vertentes políticas.
Os desenvolvedores jogam em um campo muito seguro nos comentários políticos. Somente os fascistas são diretamente mencionados em seus diálogos e a única personagem mulher negra do jogo é justamente a policial, de forma que a desenvolvedora se esquiva de problemáticas e tenta usar essa escolha como token para humanizar policiais, que recentemente vem se envolvendo em polêmicas sobre violência contra manifestantes.
Fora isso, o jogo se abstém de comentários profundos sobre as contradições do capitalismo e sua relação com o autoritarismo. Em um determinado momento é comentado sobre concentração de renda e apontado apenas o governo corrupto de Tyrak como responsável.
Não é preciso ser um jogo apologeticamente de esquerda como Disco Elysium ou Tonight We Riot para abordar essas questões. Fallout e mais recentemente The Outer Worlds já teciam comentários sobre o excesso de poder da iniciativa privada e nem por isso são jogos anticapitalistas.
Apesar de ser um jogo que incentiva os jovens a se politizarem, e isso fica bem explícito ao observamos que todos os personagens que controlamos são adolescentes, os desenvolvedores vão pelo caminho mais confortável. Votem ou se rebelem, mas façam algo, apesar de os desenvolvedores preferirem se abster de posicionamentos políticos mais claros.
Mesmo assim o jogo deixa claro em alguns pontos estéticos e subtextos algumas de suas referências. O uso do vermelho para o político autoritário e o azul para a candidata que representa a esperança nas eleições, o uso de muros e prisões para adolescentes, etc.
Ou seja, o jogo vai no caminho confortável de chutar cachorros mortos como Trump, apesar de Biden não ter ainda expressado intenções de derrubar muros ou acabar com prisões de imigrantes na fronteira com o México.
E também ao mesmo tempo em que os desenvolvedores europeus ignoram o crescimento do neonazismo no continente, o Brexit britânico ou alguns absurdos como o Parlamento Europeu equiparar o nazismo e o comunismo, algo que futuramente poderia levar a uma demonização e até criminalização de movimentos de esquerda.
Jogos com teor político são sempre bem vindos, mas os textos de Road 96, apesar de serem “ok”, não levam à grandes reflexões e dão um tom de que os próprios desenvolvedores são jovens se descobrindo politizados, com algumas visões ainda românticas e imaturas.
Road 96 é um bom jogo, que poderia entregar mais com um pouco mais de coragem dos desenvolvedores e uma escrita melhor desenvolvida. Não é um jogo que irá causar grandes reflexões políticas mas pelo menos deixa uma mensagem de certa forma positiva.
A opção de escolher por diversos protagonistas anônimos foi um bom acerto, visto que passa uma ideia de que nós como indivíduos também temos a capacidade de trazer mudanças, mas também ressaltando a importância do esforço coletivo.
É um jogo simples, que carece de uma maturidade política, mas que foi capaz de me manter interessado em saber o que havia além da fronteira. O desfecho foi um pouco decepcionante, mas a viagem em si rendeu cenas bem interessantes e me divertiu com personagens carismáticos.
Road 96
DigixArt
PC