Moon RPG Remix é o Jogo do Ano de 2021 Para Frost51

Por Jack Frost

Isso é amor.
Aquilo é amor.

Você se lembra disso?

Rainha Afrodite

Eu não irei mentir para o público — a redação pediu para eu escrever um texto de Jogo do Ano e eu estou apenas seguindo o protocolo. Eu não ligo para o jogo do ano. Eu quero que tudo que é lançamento se foda, justamente porque eu nunca vejo necessidade de pegar os jogos na hora que o marketing me diz para comprar. Até hoje eu não consegui finalizar alguns dos que mais esperei nessa geração, como Final Fantasy 7 Remake, Sekiro: Shadows Die Twice e Prey.

Por que eu pagaria 250 reais em um jogo que acabou de sair, se ele acaba custando progressivamente menos com o tempo? Por que eu focaria em algo tão caro se eu tenho uma infinidade de jogos antigos interessantes que eu ainda não experimentei? Geralmente eu jogo tudo das franquias que gosto e prefiro tratar jogos como arte, e não como produto — estou cagando e andando para o fato que um jogo acabou de sair, me importo mais é com ter uma experiência que me agregue de algum modo. Desculpe Dying Light 2, mas aquele jogo de navinha da CAVE está em promoção por 10 reais, e eu sei que esse vai ser idiossincrático.

Toda vez que leio meus próprios textos, a imagem do Takuji discursando em Wonderful Everyday me vem infelizmente na cabeça.

Infelizmente, terei que cumprir o protocolo. Mas quer saber? Eu vou usar da liberdade interpretativa e das maquinações dialéticas para não escolher um jogo do ano e no lugar disso, escrever sobre uma obra muito mais importante do que literalmente tudo que saiu ano passado, mas que tenho certeza que você provavelmente ignorou. Talvez por estar se masturbando compulsivamente para o futuro no lugar de estudar a origem de muitas das ideias que os jogos de hoje em dia seguem.

Sim, lhe comparo a um gozão — um viciado em pornografia, que não consegue ver nada exceto a própria mão e a tão pressionada pica. Sua busca nesse meio é por prazer rápido e não é muito diferente da relação que adolescentes de 13 anos tem com uma bronha. Apesar de que a relação que você tem com arte seja uma questão totalmente pessoal e que obviamente você não seja melhor ou pior como pessoa por isso: eu não faço textos para te agradar, e sim para te agredir ou te tirar da zona de conforto. E isso pode ser algo bom também. Quem sabe o que você pode descobrir aqui?

Apesar de relativamente obscuro, Moon é um jogo extremamente influente dentro do game design japonês. Uma das principais inspirações de Undertale.

O jogo em questão na verdade foi lançado em 1997, mas era disponível apenas em japonês. Foi relançado no Nintendo Switch em 2019, mas apenas traduzido para o inglês e lançado no ocidente em 2020. Então, como esse seria meu jogo do ano de 2021? Simples! Ele foi portado para Windows e Playstation 4 em 2021 — e já que todo mundo sabe que jogo de Switch custa mais do que o silêncio de Jeffrey Epstein, é mais fácil falar que não lançou até sair o port economicamente acessível no computador.

E ele é um dos jogos mais importantes da história dos games, apesar da mídia especializada estar ocupada demais noticiando repetitivamente a mesma notícia sobre Grand Theft Auto, então é natural que não conheça.

O Legado de Moon

Apesar de ser um jogo japonês, seu estilo de arte lembra muito mais algum tipo de animação europeia.

Se eu falei que esse jogo é um dos mais importantes da história, é claro que eu devo ter alguma base para falar isso. Foi produzido por um estúdio relativamente pequeno na época, chamado de Love-de-Lic. Apesar disso, não se engane: as pessoas responsáveis eram muito mais do que amadores ambiciosos que acertaram em cheio, se revelando em uma simples pesquisa como uma equipe de experientes veteranos da Square Enix. Alguns dos principais responsáveis por jogos como Super Castlevania IV e JRPGs da velha Square como Chrono Trigger e Romancing SaGa eram membros chave da empresa. Por favor, lembre-se principalmente que eles eram veteranos da Square, pois isso é uma informação que será relevante mais para frente.

Moon RPG Remix, inicialmente lançado no Playstation 1, foi o primeiro jogo da empresa e teve um grande sucesso. Claro que não teve as vendas de Final Fantasy VII, mas haviam planos de lançamento no ocidente e até um relançamento no selo Playstation the Best (o equivalente do Playstation Hits hoje em dia). Entretanto, seu impacto maior foi na esfera dos desenvolvedores de videogame. Jogos como Shenmue, Nier e até o popular indie Undertale se inspiram diretamente ou indiretamente no que foi feito nesse experimento de baixo orçamento. No caso de Undertale, é uma inspiração direta inclusive, confirmada pelo próprio criador, Toby Fox.

Apesar de serem jogos bem diferentes, uma das maiores inspirações de Undertale foi Moon.

Mais curioso que isso é saber que Toby Fox também foi responsável por falar com os atuais donos da propriedade intelectual de Moon sobre a possibilidade de lançar esse jogo no ocidente. Essa tradução recente para o inglês não teria acontecido sem o sucesso de Undertale, e muito menos sem o amor de Toby pelo jogo que tanto o inspirou.

Não apenas isso, mas o jornalista veterano, ex-desenvolvedor e lunático altamente respeitável Tim Rodgers foi responsável pela localização, algo que me anima pessoalmente como um fã do homem. Um fato curioso é que esse é um dos jogos favoritos da vida dele, então é possível dizer que existia muito amor em volta desse lançamento— algo tematicamente coerente com a ideia principal do jogo.

E é engraçado porque apesar da sua atmosfera amigável e pacífica, Moon parece ser um produto de ódio ao status quo: é uma releitura de uma história padrão de RPG japonês, derivada de Dragon Quest. Curioso sobre o que esse jogo tem de tão único? Vamos mudar de assunto então.

O Anti RPG

O jogo começa com uma cópia 16 bits de Dragon Quest chamada “Moon”, onde um cavalheiro derrota monstros e caça um dragão.

Moon tem um começo muito diferente do comum. No lugar dos gráficos que esperamos de um jogo de Playstation, somos saudados com uma estética 16 bits e uma história genérica de Dragon Quest. Você é o herói, cace o dragão do mal. Para isso, derrote criaturas e explore o mundo. Com um pouco de humor simples e um mundo condensado, o jogador termina essa parte dentro de 15 minutos. Ué? Terminou? Não, porque o protagonista de verdade é a criança que estava jogando esse jogo de videogame 16 bits, e sua mãe pede para ele desligar o videogame, logo antes dele ver o épico final da história. Bem, não tem escolha exceto dormir, né?

Então, a criança é absorvida do nada pela TV. Do nada, acaba caindo no mundo do jogo e sua forma muda: no lugar de ser uma criança normal, ele vira uma espécie de ser invisível, trajado com uma roupa que me lembra muito o mago. Qual seu objetivo? Sair do mundo do videogame (o tal do Love-De-Gard) e voltar para a vida real. E isso vai ser uma jornada muito, muito mais complicada que o planejado.

Você não é um herói em Moon, e sim apenas mais um morador.

O problema é que algo se torna claro com o tempo: você não tem superpoderes e magias. Você não consegue explorar o mundo todo de uma vez, pois você precisa dormir e se desmaiar na rua, é game over. Na verdade, você tem é que ser grato, pois uma velhinha te adota no começo do jogo por achar que você é o neto desaparecido dela, te dando um teto para descansar. E outra: você não tem nenhum guia, nenhuma pista da onde ir nesse mundo. O que você irá fazer? Bem, vagar e conhecer pessoas.

Moon é um jogo que não tem um combate e além de andar e interagir com o mundo, você tem duas ações principais que serão determinantes para a progressão do jogo. Uma delas é conseguir amor dos personagens e para tal, terá que descobrir como agradar o habitante do mundo que você está interagindo, progredindo em uma espécie de missão que cada personagem tem. Praticamente todos os habitantes do mundo tem pelo menos uma missão para você cumprir e conquistar sua amizade.

A outra seria reviver monstros mortos. Lembra que no começo você controlava um cavaleiro genérico? Ele existe também dentro dessa parte do jogo, mas não é controlado por você. Temido por todos, o “herói” invade casas e mata monstros indefesos. Você é o inverso: pode reviver as criaturas desde que agrade os espíritos desses seres, com a ajuda de charadas. E trazer elas de volta a vida também te recompensam com o amor delas.

Capturar o espírito dos animais para reviver eles é parte central do jogo.

Tanto reviver criaturas quanto criar amizades são quebra-cabeças elaborados, sustentados por um sistema de dia e noite e personagens de rotinas fixas, onde observar e esperar vai ser a principal atividade que te dará informações de como progredir. Ser paciente é o único jeito de descobrir como agradar cada personagem do jogo. Aliás, apesar de não ser o primeiro jogo com ciclo de dia e noite (Tengai Makyou fez isso antes), é um dos pioneiros e um dos que melhor utiliza o sistema de rotina para sua época, sendo as vezes até mais intricado que seus sucessores. Sinto que o uso disso é muito mais conectado à mecânica principal que Shenmue, por exemplo.

Isso também explica a trilha sonora ser entregue muito mais pelo walkman interno — contando com uma extensa lista de musicas variadas de diversos compositores diferentes — do que de modo extradiegético. Imersão é um dos focos, então os sons da natureza e dos diferentes ambientes também são muito polidos, caso o jogador não queira ouvir nada. O que gostei do jogador poder escolher é que: já que o jogo se baseia em esperar, é bastante inteligente te dar a opção de brincar com uma playlist. E é sério, a ação principal que você fará aqui é esperar. Imagino a dor daqueles que reclamaram de Death Stranding ser um simulador de caminhar em uma obra que se baseia em esperar.

Por que você coleta amor de criaturas e moradores desse mundo? Pois, toda vez que dorme, uma mulher estranha aparece nos seus sonhos e se você coletou amor o suficiente, ela aumenta o seu “LOVE” — que é o equivalente ao “LEVEL” que você tem nos RPGs. A diferença é que esse valor vai afetar o tempo que você fica acordado, e isso é muito útil: explorar o mundo sem a preocupação de quando seu personagem vai desmaiar é uma habilidade desejável aqui.

O herói não é você, e seu objetivo muitas vezes é consertar o dano que ele fez ao mundo.

O “Anti-RPG” — seu apelido — pode ser explicado por um gênero muito mais simples: esse jogo é um adventure, que mistura elementos de simuladores de vida (como Shenmue ou Deadly Premonition) com charadas e quebra-cabeças que fogem muito do que você espera do gênero. Ainda assim: a inspiração em JRPGs é clara e seria leviano da minha parte ignorar que ele brinca com clichês do gênero e os distorce para fins de humor, referências e especialmente a criação de uma camada semântica — longe de ser uma paródia vazia, a obra realmente busca explorar temas intrinsicamente interligados à relação do homem com o videogame.

E Moon levanta várias questões, unindo uma estética muito única que une renders 3D com sprites 2D e até personagens de argila. Tudo com uma coerência artística muito bem estabelecida e surpreendentemente comunicativa, onde cada estilo artístico organizadamente representa algum tipo de conceito e ajuda muito com a comunicação da função de cada elemento. Um exemplo: se é um monstrinho de argila, é um puzzle para reviver ele. Se é um sprite desenhado 2D, é um personagem interagível. Se é render 3D, é parte do cenário. Isso não apenas demonstra maestria de direção de arte, mas também uma capacidade muito grande de diversificar o estilo artístico. Esse jogo, como um todo se sente como um caos criativo extremamente talentoso.

Caos Organizado

Tudo em Moon é uma escolha consciente de uma equipe de profissionais experientes.

Apesar do quão estranho pode ser a fusão de vários estilos artísticos, jogabilidade inovadora e da sensação confortável de cotidiano com o surreal, Moon está longe de ser simplesmente uma bagunça. É uma obra cautelosamente pensada para comunicar ao jogador sobre temas concretos. Assim como Undertale, Moon quer que você questione o papel da violência nos games como a mais usada ferramenta de interação, mas ao contrário do popular indie: Moon oferece alternativas distantes de um sistema de combate. No lugar de ter que desviar de Papyrus enquanto o agrada para sobreviver, Moon remove totalmente o combate e mostra uma alternativa real ao problema que está sendo discutido nos dois jogos. Apesar de Undertale ser inegavelmente mais divertido, Moon é artisticamente mais coerente e intrigante — realmente se comprometendo com a ideia de subverter a violência como meio de comunicação nos jogos. Como já falei: é uma obra feita por veteranos da Square, refletindo sobre seus jogos passados acima de tudo.

E Moon não para por aí. Parte do texto de Moon é exatamente sobre a relação do jogo e da vida real. O quanto você é imerso em videogames? O que você tira de produtivo de videogames? O final do Moon parece algo que você veria em um filme avant-garde — não de um jogo de PS1 dos mesmos criadores de Super Mario RPG. É sobre como as mensagens positivas de um jogo consegue transcender a realidade e entrar na sua vida, apreciando o mesmo como uma obra de arte que quer dizer algo concreto, e não simplesmente apenas o produto de entretenimento barato.

Moon é sobre como jogos podem agregar — e que a paixão artística por trás deles pode mudar uma vida quando os desenvolvedores e os jogadores estão mais interessados nisso do que em focar em violência barata. Eu fico honestamente surpreso que um jogo tão velho tenha tanta maturidade artística, nível que eu espero dos melhores filmes e livros, e mais surpreso ainda que ficou tanto tempo sem localização. Só não falo mais porque quero que jogue: tente no máximo usar um guia, mas evite spoilers narrativos se puder.

Vale mencionar também que é possível zerar sem guia, mas tem muitas coisas realmente difíceis de descobrir e dependendo da sua paciência — use sem dó. O 100% do jogo não é obrigatório e você não precisa salvar todas as criaturas e ser amigo de todos do mundo, não tem nada de interessante a mais se você fizer isso. Jogue no seu ritmo, porque sinto que Moon é melhor apreciado assim.

Perfeição Temática

Moon é uma obra muito a frente de seu tempo, ao ponto que a indústria até hoje pena para alcançar tanta maestria metalinguística.

Enquanto as grandes empresas matam seus funcionários para entregar narrativas pretensiosas — que tratam seus espectadores como animais — Moon é um produto de uma equipe pequena, mas com noção de como fazer um bom jogo. Acima disso, também é uma contestação ao zeitgeist da época (não muito diferente do atual), onde o entretenimento rápido e a violência se sobrepõe aos outros valores humanos, que também compõe o que somos por dentro. Essa obra tenta colocar o amor como a ferramenta central do jogador e isso é digno de aplausos por si só. E claro que esse jogo não vai parar por aí, indo ao limite da experimentação visual e da subversão para entregar momentos inesquecíveis ao jogador. Desde tocar instrumento com macacos em uma ilha deserta, até exorcizar uma casa mal assombrada.

Moon pode as vezes dificultar mais as suas pistas do que deveria, mas isso não muda nem 1% do impacto final dessa obra-prima. Não é por acaso que a própria empresa responsável e outras empresas que os mesmos membros centrais tentaram replicar o mesmo conceito em jogos posteriores, mas com mudanças mecânicas ou temáticas interessantes. Chulip talvez seja um dos mais popular deles, e esse estilo ganhou até um apelido dentro do nicho, os empathy simulators” (simuladores de empatia em português). Se você se interessar por Moon em algum nível — mesmo até que não goste do jogo em si — eu recomendo muito você dar uma olhada nessa imagem. É um guia que lhe orienta ao legado da Love-de-Lic e das empresas que os membros principais participaram.

Além de ter coisas similar como Contact e o já dito Chulip, eles fizeram até o popular Rule of Rose! Como já afirmado, as pessoas por trás desse aqui são especialistas, e com certeza interagir com mais de seus trabalhos pode aumentar seus horizontes e definições do que um jogo pode ser.

O legado da Love-de-Lic é absurdo, especialmente quando colocam em conta as empresas derivadas.

Enfim: por que Moon é meu jogo do ano? Por priorizar ser arte acima de tudo, e por ser tão expressivo e honesto que eu não consigo parar de pensar e admirar todo o esforço que foi colocado ali. Por martelar o papel do jogo como arte e inteligentemente criticar tudo que há de alien no nosso tão amado meio. Por questionar que valores estamos absorvendo com essa constante espiral de violência repetitiva e relaxante em jogos e que valores podíamos expressar no lugar. E especialmente: por repensar a interação, se distanciando do combate e se aproximando mais do que nos torna humanos — o amor.