Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Texto escrito pelo colaborador Mateus Carvalho.
O estigma em volta de JRPGs é um fenômeno interessante: considerados gigantes em escala, duração e em seus infinitos sistemas, é um gênero que acaba por ser definido mais por seus excessos do que por elementos específicos (apesar de estes ainda estarem presentes em discussões, como é o caso do famoso trope de “matar deus”).
Apesar disso, quantos desses são realmente ambiciosos em sua abordagem? Histórias grandiosas estão sempre presentes, mas suas narrativas são de fato megalomaníacas a ponto de valerem a infâmia? Se pegarmos dois dos maiores JRPGs da história em Final Fantasy VII e Persona 5, tratam de jogos com sistemas abundantes e complexos, conteúdo extenso e uma história que escala para a grandiosidade de um épico, mas suas narrativas são diretas e simples. Isso não é um demérito de forma alguma, mas coloca em perspectiva pra onde os olhos do jogador vão quando se tratando de absorver uma das obras do gênero.
Takashi Tokita começou a trabalhar na Square em 1987, e, antes de lançar sua obra-prima absoluta Chrono Trigger em 95, acumulou experiência em vários títulos do estúdio, a grande maioria da série iniciada por Sakaguchi. No ano anterior ao lançamento do jogo que solidificaria seu nome no panteão dos videogames, porém, ele fez sua estréia com Live A Live, jogo de Super Nintendo que acabou esquecido pelo tempo até ser revivido em 2022.
Em conceito, Live a Live é ambicioso como poucos depois dele e nenhum antes. Sete narrativas que, em conjunto, atravessam toda a história da humanidade indo até o ponto de, como o próprio jogo descreve, “um futuro distante”. Em cada capítulos somos apresentados à um ícone associado à cada época: o homem das cavernas, o mestre de artes marciais, o ninja, o pistoleiro, o jovem lutador, o yankee do futuro e o robô de uma nave. Enquanto, no mesmo ano, Earthbound estava desafiando o padrão dos JRPGs, trocando as terras de fantasia capa-espada por uma ambientação suburbana, Live a Live estava tentando engolir todos os principais gêneros de obras marcantes das últimas três décadas anteriores ao seu lançamento.
Mais do que simplesmente ambientar cada um dos contos em períodos e locações diferentes, porém, Live a Live emprega abordagens narrativas completamente únicas para cada uma delas. Na seção pré-histórica temos um pequeno capítulo de comédia física proveniente da falta de diálogos, com um humor recheado das gags japonesas de obras como Gyatoruzu e Dr. Slump. Já no futuro distante, uma narrativa mais paciente que flutua entre o suspense e o terror.
Isso é o resultado de uma produção absolutamente cheia de talentos, e times específicos para cada um dos 8 cenários (não considero a existência do oitavo capítulo oculto como um spoiler visto que seu protagonista, Oersted, está presente em diversos materiais promocionais desse remake).
As artes e designs de personagens de cada uma das sessões, por exemplo, foram feitas por mangakás diferentes da editora Shogakukan, incluindo nomes como Yumi Tamura (Bastard, 7 Seeds), Kazuhiko Shinamoto (Honō no Tenkōsei, G Gundam) e, talve mais significativo, Gosho Aoyama antes do lançamento de Detetive Conan. Cada um deles dita o tom do segmento em questão, enquanto que a trilha de Yoko Shimamura não só emula com perfeição os gêneros pelos quais passeia, como também exemplifica o conhecimento da compositora em lidar com as limitações dos cartuchos (e aqui digo, sem medo de hipérbole, que Live a Live tem a melhor faixa de boss battle da época).
Nessa nova versão ainda temos o aditivo da excepcional estética HD-2D de Octopath Traveler, que mistura sprites 2D refeitos com cenários 3D de uma maneira tão natural que fica até difícil não se emocionar em alguns momentos simplesmente por estar presenciando um trabalho bem feito. Isso, claro, também é parte do time de design original que concebeu mundos ricos e cheios de criatividade, e que aqui atingem um novo nível de eu potencial.
O que se torna claro enquanto jogando Live a Live é que se trata de uma obra cujo principal objetivo é alinhar os tropes de gameplay do gênero com a narrativa particular de cada capítulo, fazendo assim um dos JRPGs mais imersivos pelo fato de estar constantemente mudando o ângulo no qual nos vemos como “jogador”.
O já mencionado futuro distante, por exemplo, conta a história de tripulantes de uma nave que, após terem capturado um espécime alienígena perigoso, passam a enfrentar dificuldades que colocam suas vidas em risco. Nós, porém, controlamos o recém-nascido (ou recém-montado) Cube, um robôzinho que passa a auxiliar o resto da equipe com apenas dois verbos, andar e interagir.
Nos colocando na posição de observador, o jogo toma um risco grande, já que se trata de um capítulo inteiramente sem combate (existe um pequeno desafio arcade, porém, caso você queira um pouco de ação). O importante não é amarrar gameplay à narrativa, e sim fazer a primeira ficar à serviço da segunda. Isso é uma constante: seu sistema de RPG tático é grande, mas nenhum personagem vai ter acesso a todas as ferramentas que o jogo oferece, apenas àquelas que fazem um sentido lógico dentro da narrativa.
E é assim que o jogo passa a ser algo único: sua narrativa se apoia tanto na imersão inerente causada pelos videogames, quanto pela estratégia inteligente de limitar o jogador de acordo com a função de cada personagem dentro da própria narrativa. Nesse sentido, é uma história (ou 8 histórias) que só poderia ser contada em um jogo.
Essa busca pela meta-experiência pode acabar causando alguns atritos difíceis de lidar. Sim, aprecio muito a coragem e a estratégia narrativa do futuro distante, mas também estaria mentindo se não dissesse que o jogo não sabe lidar bem com o número de restrições que coloca nesse trecho, fazendo com que boa parte do capítulo seja apenas andar de ponto A até ponto B e de volta ao ponto A.
Ao mesmo tempo, fico com o questionamento da necessidade de alguns cenários. O velho Oeste, por exemplo, é interessante e adiciona à mensagem total do projeto, mas no cerne acaba soando apenas como uma recriação de Sete Homens e um Destino. E enquanto o presente tem uma das sacadas mais inteligentes no que tange seu combate, também parece um cenário pouco explorado pelos desenvolvedores.
Apesar disso, é inegável a força que essas sete histórias, como conjunto, tem em seu argumento da luta contra o Ódio (com letra maiúscula mesmo) que toma formas diferentes em cada um deles. Apesar de inicialmente não estarem conectadas, formam um arco grande de que, enquanto o mal existir, haverá o bem para sobrepujá-lo e, quando chegamos ao oitavo segmento, até então escondido, a obra se eleva de tal forma que prefiro deixar para que cada jogador descubra por si só.
O que esse remake faz, no fim das contas, é jogar luz em uma obra-prima que originou outras diversas, mas se manteve no anonimato, mesmo sendo parte da carreira de um diretor renomado e de um estúdio consagrado. Só de fazer isso, já merece todos os pontos do mundo. Que fazem isso com tanto cuidado, tanto carinho, e de maneira tão certeira, é só mais uma sorte que tivemos.
Live A Live
Square Enix
historia
PC, Playstation 4, Nintendo Switch