The Great Ace Attorney Chronicles é o jogo do ano para Mateus Carvalho

Escrito por Colaborador
Opinião

A carreira de Shu Takumi não é muito diversa, mas não por isso é menos fascinante. Iniciando sua carreira com um jogo tie-in de um anime nichado, Gakkou no Kowai Uwasa: Hanako-san ga Kita!!, Takumi logo em seguida esteve envolvido com duas das maiores franquias da época do Playstation: Resident Evil e Dino Crisis. Logo depois, tendo a chance de criar algo próprio, ele concebeu sua série de jogos mais marcantes: Ace Attorney, onde focou seus esforços por quase todo o resto de sua carreira até então (a exceção é Ghost Trick, ironicamente seu melhor jogo até hoje).

O que é fascinante na maneira de Takumi trabalhar é como ele encontra espaços pra se desenvolver dentro de fórmulas aparentemente simples e restritas. É muito fácil olhar para os três primeiros jogos da série Ace Attorney e pensar que são jogos iguais em sua gameplay, mas uma análise mais micro revela que não é o caso. Em um jogo que aparentemente é apenas um adventure de detetive comum, Takumi explorou praticamente tudo que a fórmula permitia naquele universo.

Greate Ace Attorney

Em Justice for All, por exemplo, nos é introduzida a mecânica de poder apresentar perfis no tribunal, além de evidências. Isso pode parecer uma mudança minúscula, mas quando consideramos que o seu Court Record é como sua arma no tribunal, não é difícil ver que essa nova implementação expande nossas possibilidades consideravelmente. Da mesma forma, em Trials & Tribulations, Takumi começou a alterar a maneira como abordávamos os testemunhos em corte. Em mais de uma ocasião, o jogo limita o uso do botão de pressionar a testemunha, até então nossa rede de segurança, nos fazendo considerar tudo o que vimos até então para termos certeza de que nosso tiro argumentativo será certeiro.

Não à toa, a trilogia pensada por Takumi é de longe mais consistente do que seus sucessores. O criador também atuou como diretor em Apollo Justice, quarta entrada da série, mas deixando bem claro que seu plano original era encerrar a história de Phoenix Wright com o impactante Bridge for the Turnabout, último capítulo do terceiro jogo. Após isso, as contribuições dele para a franquia viriam em forma de spin-offs: o primeiro, Professor Layton vs Phoenix Wright, e o segundo, a duologia The Great Ace Attorney.

Consistente como poucos

Como já dito antes, cada jogo de Shu Takumi é uma evolução em relação ao anterior. The Great Ace Attorney (e aqui vou tratar da duologia como um jogo só, visto que foram jogos pensados para operar em unidade e não há grandes mudanças de gameplay entre os dois) é, em vários aspectos, uma continuação direta de ideias que ele havia explorado no jogo de Layton vs Wright, mantendo coisas como o sistema de júri e a examinação de várias testemunhas em simultâneo.

Por sorte, ninguém entende a série Ace Attorney tanto quanto seu criador. É muito fácil observar TGAA de longe e tratá-lo como apenas mais um jogo de uma franquia que, para o bem ou para o mal, foi definida por sua fórmula. O que essa duologia entrega, porém, está muito além disso. Enquanto, sim, a fórmula permanece (e deve incomodar pessoas que se frustram por estar sempre à frente dos nossos protagonistas), The Great Ace Attorney Chronicles é, de longe, o trabalho mais consistente da série de advogados até o momento.

Um jogo muito mais interessado em contar sua história do que nos dar o controle desta, existem muitos elementos que podem soar cansativos ou tediosos para os jogadores. A média de texto da franquia já é muito alta, e esse é o jogo que mais contém passagens de diálogo. Por sorte, a equipe reconhece que a maneira de entregar esses diálogos é essencial para que funcionem, então o que temos aqui é uma escrita bastante acima da média sendo entregue por personagens extremamente carismáticos (principalmente no que tange suas animações) discutindo assuntos que de fato engajam o jogador.

Velha era com novos horizontes

Essa sessão conterá spoilers mínimos sobre os primeiros capítulos do jogo

TGAA é uma prequel da série principal focada em Ryuunosuke Naruhodo, predecessor de Phoenix Wright (Ryuichi Naruhodo no original). Se passando no início do século XX, com um Japão ainda formando seu sistema legal moderno (daquele mundo, que fique bem claro), a história vai intercalar a jornada de Ryuunosuke se tornando um advogado completo com as descobertas e ensinamentos proporcionados pela Inglaterra modernizada, contrastantes com o Japão tradicional que vemos no primeiro caso do jogo.

Não é incomum que os jogos da franquia tenham uma pequena linha narrativa que vai se revelando cada vez mais importante e que se feche no último capítulo com um grande caso, mas em TGAA, todos os casos são referentes à busca de Ryuunosuke em entender o verdadeiro significado da honra por trás de um advogado de defesa. Para isso, o jogo usa como ponto de partida não Ryuunosuke, mas sim seu melhor amigo, Kazuma Asogi, como um ideal a ser alcançado.

Asogi é um personagem fascinante. Criado para ser a representação da honra e de morais inabaláveis, o melhor amigo de Ryuunosuke é um apoio importantíssimo na introdução do jogo, e o detalhe das pontas de sua bandana estarem sempre esvoaçando é um toque de gênio para mostrar exatamente o quão magnânima sua presença é. Ao mesmo tempo, apesar de ser uma representação da honra e tradição japonesas, Kazuma logo se apresenta como um personagem determinado a quebrar todas as convenções que mantém aquela sociedade presa em um status quo engessado, antiquado e extremamente punitivo (comentarei mais sobre isso em breve).

Mas Asogi é apenas um dos personagens memoráveis do jogo. O outro grande destaque do elenco é Herlock Sholmes, personagem criado por Maurice Leblanc como uma paródia do detetive mais famoso da literatura, e que aqui é perfeitamente implementado na narrativa quase que como um meta comentário da inabilidade que todos os personagens de jogos anteriores tem de compreender o óbvio. Divertido e carismático como poucos, Herlock também é essencial em mostrar o ponto de vista britânico da equação, e sua relação com Ryuunosuke reforça os pontos temáticos da obra de maneira muito natural.

Falar sobre o elenco de TGAA é, num geral, falar sobre personagens que instantaneamente prendem seu interesse, e em grandes casos ganham sua simpatia. Desde Susato, que é uma excelente subversão na figura de ajudante que a série apresentava até então, indo de personagens secundários mas levemente recorrentes, como Hosonaga e Gregson, ambos detetives maravilhosos, e chegando em personagens terciários que aparecem por apenas um caso, mas cujas personalidades são tão fortes que é impossível não se deixar cativar por.

Tudo isso, diga-se de passagem, é também mérito das equipes de design e animação do jogo, que entregam perfeitamente todas as idiossincrasias dessas figuras de maneira que a série nunca conseguiu fazer. Basta observar o “toque especial” de Ringo e Nash para perceber exatamente o tamanho do esforço que foi feito para conferir carisma à esses personagens.

A justiça é política

Uma piada recorrente no meio do fandom de Ace Attorney é a insistência de sua localização em evitar qualquer tipo de coisa que entregue uma localização específica e real na qual a história acontece. Até mesmo os jogos Ace Attorney Investigations, que são extremamente políticos, falavam de conflitos diplomáticos se ancorando em países fictícios como Zheng Fa.

TGAA é o primeiro jogo da série a se passar inegavelmente em países reais. Por conta disso, a veia política do jogo também é muito mais explícita e palpável.

Shu Takumi idealizou Ace Attorney como uma crítica ao sistema judiciário japonês, que tem uma das maiores taxas de condenação do mundo, com cerca de 99%. O tom heróico de Phoenix é muito mais exacerbado quando levamos isso em conta: ele não está apenas lutando contra um promotor e contra as circunstâncias geralmente desfavoráveis em que ele se encontra, ele está lutando contra todo um sistema que evoluiu especificamente para que injustiças enormes ocorram o tempo todo.

Em TGAA, Takumi vai ainda mais fundo nisso. Os dois polos são claros aqui: Japão com seu sistema judicial ainda em estado embrionário representa a tradição, enquanto que a Inglaterra, modernizada e com um sistema judicial mais complexo, representa a modernidade. No primeiro caso do jogo, o promotor Takeuchi Auchi, um veterano da lei japonesa, comenta com desdém a presença dos advogados novatos ali, e também regurgita pensamentos retrógrados ao longo de seu tempo em corte. Ao final, Kazuma profere um discurso alegando que a oposição contra o promotor ficará apenas mais forte, e que o velho deve dar espaço ao novo.

Com isso em mente, a jornada de Ryuunosuke para a Inglaterra representa bem mais do que o que plot deixa transparecer, é também, simbolicamente falando, uma grande jornada de progresso que Takumi trata como um ideal. Essa jornada nunca aconteceu na realidade, visto que o sistema japonês foi diretamente influenciado pelo francês, assim como a maior parte do mundo, mas aqui, a história oferece um “e se…” interessante que, quando ligado à série principal, se torna muito mais forte por mostrar exatamente como chegamos naquele ponto.

Susato, apresentada como uma das personagens mais inteligentes no que tange conhecimento legal, é constantemente desdenhada por personagens ignorantes, tanto japoneses quanto britânicos, e quando ela finalmente tem sua chance de brilhar no primeiro caso do segundo jogo, é quase que como um tapa em todos os discursos retrógrados apresentados contra ela até então.

Da mesma forma, Takumi apresenta a Inglaterra com um olhar curioso um misto de fascínio e dura crítica à sua constituição de classe. Enquanto o mundo inglês do jogo é apresentado como extremamente moderno e refinado, há também a clara noção de que esse mundo só pode ser aproveitado por aqueles de alta classe, geralmente personagens antipáticos ou vilanescos que também proferem preconceito contra a nossa dupla principal, por os verem como “pessoinhas simples daquela ilha no fim do mapa”.

Barok van Zieks é um desses tipos. Um personagem com um pensamento forte calcado na ideia da superioridade de sua classe e que, por conta de traumas lhe causados pelo meio em que se formou, usa de um racismo velado como forma de ataque. Seu caminho ao longo do jogo é fascinante por expor exatamente todo o lado danoso da sociedade britânica que Takumi está representando aqui.

O que essa história defende não é simplesmente que o tradicionalismo japonês está errado, mas é que é necessário compreender o que há de melhor na tradição, enquanto trocando suas ideias ultrapassadas por ideias mais modernas. Uma união entre dois polos que, como comentado anteriormente, é muito bem representado na relação entre Ryuunosuke e Herlock, dois representantes de cada povo que trazem consigo o que há de melhor no jeito de pensar de cada um.

Em suma, TGAA é um título tão diferente dentro de sua própria franquia que o próprio Spirit of Justice, jogo da série principal lançado entre os dois jogos da duologia, parece um retrocesso por se manter nas mesmas convenções que nunca tiveram a coragem de abandonar. Acima de tudo, uma coisa fica clara: em seu máximo, poucos jogos são tão carismáticos, intrigantes e memoráveis como Ace Attorney.

Texto escrito por Mateus Carvalho, dos podcasts Hamones e Vigilância Sanitária.