Esta crítica foi escrita usando uma key enviada para o Game Lodge
Crítica escrita por Felipe Lins
Ao anunciar um novo projeto intitulado literalmente Project Triangle Strategy, a Square mostrou as primeiras imagens de um novo jogo tático em produção. Fãs de clássicos como Final Fantasy Tactics e Tactics Ogre não puderam deixar de se engraçar com o novo projeto com a carinha de 2D-HD usado em Octopath Traveler e sistema de batalha que lembrava imediatamente as referências do gênero.
Eu sou um jogador das antigas, fã moderado do gênero tático. Comecei no Mega Drive com Shining Force II, um dos meus xodós, mas também joguei Tactics Ogre, Fire Emblem e Final Fantasy Tactics, talvez os quatro maiores representantes do gênero. Ao saber desse novo jogo já colei no hype e fiquei atento ao lançamento do jogo, inicialmente anunciado para Switch, mas logo portado para PC.
Triangulação é um termo muito utilizado em diversos segmentos. Arte, entretenimento, mídia, matemática, tecnologia, psicologia e ciências sociais são alguns exemplos de âmbitos com usos diferentes da palavra.
No xadrez, triangular é realizar jogadas que dão vantagem ao jogador impondo ao outro uma jogada mais fraca. Nas finanças, implica a exploração de um relacionamento entre três moedas. Já na política, a triangulação implica na derivação de dois pólos ideológicos com uma terceira ideologia intermediária. No caso da Psicologia, triangulação envolve o conflito de dois indivíduos, onde um terceiro intervém para mediar a situação.
A riqueza de significados do título talvez tenha sido um dos motivos da equipe ter apenas removido a palavra “Projeto” pra dar o nome comercial final ao jogo. Sem mencionar que “divisão triangular” é outro uso da palavra em contexto militar, referente à estrutura de um batalhão em 3 regimentos.
Alguns desses significados parecem de fato terem sido aproveitados conceitualmente no design de Triangle Strategy. O jogo bebe da fonte de suas referências em matéria de design, especialmente na estrutura em eventos de Final Fantasy Tactics e outros detalhes. Vamos a eles.
Shining Force II
Shining Force, um dos primeiros jogos do gênero, tinha alguns dos atributos que hoje vemos em outros jogos. A cada 100 pontos de experiência um novo nível de classe, a partir de determinado nível uma unidade poderia ser promovida para uma categoria mais forte, e cada personagem possui um kit único de habilidades, apesar de alguns deles possuírem kits duplicados em matéria de coerência (uma promoção similar, personagens de mesma raça vindos da mesma cidade), mas num geral cada um com diferenças que os tornavam distintos em personalidade e desempenho em batalha. Mas seu aspecto de maior destaque dentre os seus pares é sem dúvida a exploração de mundos e cenários. Shining Force II, em especial, tem uma exploração de nível igual a qualquer outro RPG de turno, com os combates tomando a forma tática.
Jogos como Final Fantasy Tactics e Tactics Ogre optaram por uma locomoção mais macro, região por região, sem ter exploração de cenários. Isso deixa o avanço mais focado, especialmente na exposição de cenas e desenrolar da história, apesar de jogar fora a diversão de achar tesouros, passagens secretas, e conversar com as pessoas pelo caminho.
Aqui em Triangle Strategy, como seu nome implica, temos uma triangulação desses pólos. Em cada novo segmento temos eventos principais e secundários focados e objetivos se desenrolando em pontos específicos do mapa. Não há locomoção micro entre locais, mas em diversos desses eventos temos algo como um “nível aberto” pra explorar.
Podemos conversar com as pessoas, explorar o ambiente e encontrar tesouros. É uma experiência mais dosada, o que chamo “bite sized”, mas que oferece um pouco dos dois modelos, uma verdadeira alternativa no meio do caminho. Aqui já conseguimos ver os conceitos do título se aplicando no design como princípios fundamentais. Mas vamos explorar mais.
A maior característica de Final Fantasy Tactics que o define é seu job system. A diversão de trocar a classe de unidades, desenvolvê-las e brincar com a mixagem de habilidades de uma classe com outras é algo único, que viemos a ver mais na frente na franquia Bravely Default ser ainda mais permissiva.
Tactics Ogre também permite que façamos uma exploração desse sistema, mas não temos tanta liberdade de recombinar. Shining Force e Fire Emblem são mais rígidos. Cada personagem possui sua história e naturalmente ela resulta nas aptidões e habilidades desenvolvidas e perseguidas por cada personagem.
É uma abordagem mais restritiva e sem tanta customização, que abre mão de uma maior agência do jogador pra intensificar coerência e desenvolvimento de personagens escritos. Há muito valor nisso em matéria autoral, apesar de menos “divertido” para o jogador. Triangle Strategy segue essa linha à risca, bem próximo de Shining Force com as “promoções” no nível 10 e nível 20.
Inclusive, a obra aproveita para mesclar isso com os elementos narrativos, oferecendo eventos opcionais com desenvolvimento de cada personagem. A estrutura da narrativa de cutscenes inclusive se divide em 3 (curiosamente): Cenas de história principal, cenas de histórias paralelas, opcionais, e cenas de desenvolvimento de personagens, também opcionais.
Essa narrativa se soma a informações que o jogador adquire seja conversando com NPCs ou comprando nas lojas. Elas vão compor a “enciclopédia” do jogo em matéria de história de pano de fundo do mundo, com eventos marcantes anteriores ao recorte abordado pelo roteiro, bem como implicações globais de alguns eventos em curso. Não há nada fora da curva nessa proposta, é na verdade bastante comum no meio.
O que vai tornar mais interessante a questão narrativa é especificamente um outro aspecto… triangular. Tal qual na psicologia, em determinados momentos do jogo uma questão político-estratégica será apresentada ao protagonista. Pelo costume do clã, tal questão é discutida com o conselho de guerra da casa Wolfort e em seguida há uma votação para decidir que rumo será tomado.
Na pele de Serenoa, o recém-nomeado lorde do clã, o jogador perceberá logo que seu papel será muito mais do que um simples ouvinte, mas um mediador nessas questões. Via de regra o grupo se dividirá igualmente entre partidários das duas opções de cada questão.
Cabe a você conversar com as pessoas ao redor, captar informações novas e posteriormente debater com cada um dos membros discordantes do caminho pretendido. Será necessário ouvir atentamente as preocupações de cada personagem e considerar qual a melhor resposta a ser dada para convencer ele ou ela a mudar de ideia. É intrigante como mais uma vez vemos a aplicação mecânicas de um conceito semântico do título. São esses detalhes que enriquecem a obra.
Acima de tudo, vale lembrar que o núcleo central da experiência ainda é um RPG tático, logo o combate remete naturalmente ao xadrez e ao militarismo, evocando naturalmente a ideia da triangulação.
É salutar que uma obra moderna como Triangle Strategy consiga realizar o feito de reutilizar conceitos pré-estabelecidos enquanto traz elementos novos tão bem trabalhados, num misto de novidade e tradição. É com certeza um título rico em matéria autoral, sem dúvida, algo que só conseguimos ver surgindo nesse meio AAA graças aos esforços da própria Square em permitir que times menores trabalhem em jogos menos tecnologicamente intensos, em oposição aos medalhões Final Fantasy XVI, Final Fantasy VII Rebirth e Forspoken, títulos ainda em desenvolvimento que utilizam o que há de mais moderno em resolução de texturas e modelagem 3D.
É um mergulho na nostalgia da Pixel Art com o frescor da modernidade, triangulando entre o novo e velho mais uma vez de forma conceitualmente coerente, além de se provar um entretenimento bastante rico que me garantiu boas horas de diversão. Há ainda um bom incentivo para uma segunda, terceira e até quarta jogada, já que seus quatro finais envolvem caminhos diferentes com bastante material distinto a ser explorado.
O roteiro sinaliza inclusive um peso maior ao matar personagens importantes, apesar de não descambar para uma narrativa cinza como em Game of Thrones. Ainda temos aqui uma linha clara entre heróis e facínoras. Seu único defeito vem justamente de um outro ponto forte, que é o belíssimo trabalho de design de personagens.
O gestual e a caracterização de todos exibe muita personalidade e atitude, o que acaba escorregando um pouco nos estereótipos, criando designs um tanto quanto “Disney clássica”, onde você logo identifica vilões e protagonistas. O carisma advindo, entretanto, ao meu ver, compensa.
Triangle Strategy sem sombra de dúvidas figura entre os títulos de maior destaque do ano de 2022, tanto em aspectos de seu nicho, RPG, como também em aspectos de alcance mais geral graças a seu enredo e personagens carismáticos. Grata surpresa para quem há anos aguarda um bom tático nos consoles de mesa. Aqueles que pularam as gerações dos portáteis com certeza perderam uma era de ouro à parte, mas essa questão a gente triangula para um outro momento.
TRIANGLE STRATEGY
Square Enix
Square Enix, ARTDINK
PC, Nintendo Switch